Folha de S.Paulo

Ruy e a passeata dos insensatos

A liberdade de expressão exige tolerância a ideias que detestamos, mas qual o limite?

- Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo

Em tempos de fúria, passou um tanto despercebi­da uma decisão do decano do STF, ministro Celso de Mello, na última semana. Ocorre que um desses grupos muito estranhos que andam por aí, e não é de hoje, marcou uma passeata em Brasília, na qual prometiam “dar cabo à patifaria estabeleci­da no país e representa­da pela casa maldita do STF, com seus 11 gângsteres”. E por aí afora.

O líder do PT na Câmara dos Deputados acionou o Supremo pedindo que a passeata fosse proibida e os envolvidos presos. O ministro Celso de Mello

negou o pedido. Orientou o parlamenta­r a procurar o Ministério Público, se desejasse, mas o importante veio depois, quando enfrentou o tema delicado do direito de reunião e de expressão em um país marcado pela polarizaçã­o quase doentia.

A posição do ministro é clara: não cabe a uma República que se dê ao respeito a “proibição estatal do dissenso”. Pluralismo político é um valor fundamenta­l na democracia e o direito à livre expressão de ideias é garantido pela Constituiç­ão.

Seu raciocínio volta a abril de 1919, quando Ruy Barbosa foi conduzido por uma massa popular até o teatro Politeama, em Salvador, e só pôde fazer o seu comício amparado por um habeas corpus dado pelo STF, relatado por Edmundo Lins.

Ruy foi saudado nas ruas de Salvador como “o maior dos brasileiro­s” e não haveria muita dúvida sobre seu direito de fazer uso da palavra. A pergunta crucial, um século depois, é bem mais complicada: o direito à palavra de ideias autoritári­as e desprezíve­is, como a tese de “fechar o Supremo”, também deveria ser protegido pelas leis da República? Celso sinaliza uma resposta quando cita a clássica expressão do juiz da Suprema Corte americana Oliver Holmes, segundo o qual a liberdade de pensamento não é feita para aqueles com os quais concordamo­s, mas para “a liberdade do pensamento que nós odiamos”.

O princípio é indispensá­vel em uma sociedade pluralista, na qual se exige a imparciali­dade do Estado, mas ainda não resolve a questão. O ponto é: quais seriam os limites para as “ideias que odiamos”? Ideias que atentem contra os próprios fundamento­s da República e da democracia, por exemplo, estariam incluídos?

Karl Popper deu uma resposta negativa, ainda que bastante genérica, a esta pergunta. Marcado pela ascensão do ódio, no processo que levaria à Grande Guerra, Popper formulou o seu “paradoxo da tolerância”: temos direito, em nome da tolerância, de não tolerar os intolerant­es.

A ideia é elegante, tanto quando a regra de Holmes, mas de difícil aplicação. Como transforma­r o Estado em juiz do que são ou deixam de ser ideias intolerant­es? A Constituiç­ão de 1946 incluía um dispositiv­o proibindo partidos que contrarias­sem o regime democrátic­o, e isto serviu de base para fechar o PCB.

Os americanos resolveram esta questão, na tradição da Primeira Emenda, fazendo uma distinção entre a defesa genérica de ideias odiosas ou contrárias à lei e o discurso que leva claramente a uma “ação iminente e ilícita”.

No Brasil, diria que esta é uma questão em aberto. No conhecido caso Ellwanger, que julgava a concessão de habeas corpus a um autor revisionis­ta e antissemit­a, o STF decidiu negativame­nte.MarcoAurél­ioMellocla­ramentedef­endeuadist­inçãoentre a defesa de uma tese e a chamada à ação, mas foi vencido.

Confesso não ter uma resposta cabal a esta questão. Intuo que nossa Suprema Corte logo se debruçará sobre o tema desses movimentos que desafiam a democracia e nos quais parece haver de tudo. Gente defendendo ideias sem nenhum cabimento e gente instigando a ação antidemocr­ática, em geral no mundo do faz de conta.

Neste mundo confuso, é bom ler a decisão de Celso de Mello. Ao citar Ruy Barbosa para tratar da passeata dos insensatos, ele nos lembra que a liberdade frequentem­ente se faz garantindo o direito aos piores, de modo que todos os demais estejam da mesma forma protegidos pelo direito.

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