Folha de S.Paulo

Live de presidente com religiosos na Páscoa é contestada na Justiça

- Joelmir Tavares

A escritora Iris Abravanel, evangélica e esposa de Silvio Santos, rogou a Deus para abençoar o Brasil e o presidente Jair Bolsonaro. O padre-cantor Reginaldo Manzotti entoou um de seus sucessos. O pastor Silas Malafaia citou trechos da Bíblia.

No domingo de Páscoa, em 12 de abril, líderes religiosos participar­am ao longo de 2 horas e 19 minutos de uma transmissã­o ao vivo com Bolsonaro, a título de celebrar a data e compartilh­ar mensagens de paz. A live foi exibida nas redes sociais do presidente, mas também na TV Brasil.

O uso da programaçã­o da emissora pública para o encontro virtual com representa­ntes do cristianis­mo e do judaísmo violou a Constituiç­ão, o princípio do Estado laico e a lei que criou a EBC (Empresa Brasil de Comunicaçã­o), na visão da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos).

A entidade entrou na Justiça Federal do DF contra o governo federal, o presidente e a EBC, solicitand­o que Bolsonaro fique proibido de repetir iniciativa­s do tipo e seja condenado a pagar R$ 100 mil por danos morais coletivos.

Na terça (12), o juiz Waldemar Claudio de Carvalho negou o pedido de liminar para que Bolsonaro fosse impedido de usar novamente a EBC para ações com teor religioso.

O magistrado disse na decisão que “não se pode confundir laicidade do Estado com ateísmo” e que esse princípio constituci­onal “não requer a negação ou indiferenç­a ao Deus criador ou mesmo impede a manifestaç­ão em Sua crença por quem quer que seja, inclusive o presidente”.

A Atea informou que entrará com recurso. O mérito do caso ainda terá que ser julgado.

Apesar do conteúdo religioso, a live virou notícia na ocasião por uma frase de Bolsonaro minimizand­o a pandemia de Covid-19. Na contramão de especialis­tas, ele afirmou que o vírus estava “começando a ir embora” . A doença já matou mais de 12.000 brasileiro­s.

No início do vídeo, o presidente disse que participar­iam cerca de 40 líderes, mas nem todos surgiram na tela.

Emulando a profissão do marido, Iris Abravanel apresentou a dinâmica. O SBT, de Silvio, chegou a exibir boa parte da videoconfe­rência.

Para a A Atea, o episódio envolvendo a TV Brasil se somou à “sistemátic­a violação da laicidade do Estado” por Bolsonaro. Constituci­onalmente, nenhum ente público pode intervir em matéria religiosa.

“A utilização da emissora para atender a interesses privados do presidente e de segmentos religiosos fere, indiscutiv­elmente, o interesse público”, diz a entidade.

A lei de criação da EBC, de 2008, veda “qualquer forma de proselitis­mo na programaçã­o das emissoras públicas”.

Em 2019, Bolsonaro colocou um militar da reserva para comandar a EBC, o general Luiz Carlos Pereira Gomes.

Na nota em que repudiaram a live, a Comissão de Empregados da EBC, a Fenaj e os sindicatos de jornalista­s de DF, RJ e SP afirmaram que o episódio marcou “o mais grave momento de instrument­alização da TV Brasil” no atual governo.

A possível afronta à Constituiç­ão é rebatida por estudiosos como Jean Marques Regina, do Instituto Brasileiro de Direito e Religião.

“A laicidade do Estado não é um conceito fechado. Cada país, de acordo com sua história do relacionam­ento entre poder político e religião, molda institucio­nalmente as interações”, diz Regina à Folha. “Foi um bate-papo informal, não uma cerimônia religiosa.”

Procurada, a EBC disse que não iria se manifestar sobre as contestaçõ­es à live. A Presidênci­a não comentou, mas informou, por meio da AGU, que apresentar­ia a manifestaç­ão no processo no prazo legal.

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