Folha de S.Paulo

No sul global, as cidades formam a última linha de defesa contra a Covid-19

- Robert Muggah e Miguel Lago Muggah é diretor de pesquisa do Instituto Igarapé; Lago é diretorexe­cutivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde

Enquanto a primeira onda da pandemia do coronavíru­s recua na Europa Ocidental, no leste da Ásia e na América do Norte, ela começa a ganhar velocidade na América Latina, na África e no sul da Ásia.

Os países nessas regiões de média e baixa renda manifestam números crescentes de contágios, hospitaliz­ações e óbitos, e é possível que, devido à baixa taxa de testes, esses números sejam ainda maiores.

O impacto da Covid-19 será uma consequênc­ia não somente do nível de preparação nacional, mas do preparo de estados e municípios para lidar com a crise. Os próximos passos tomados por cidades no Brasil, na Nigéria e na Índia definirão tanto a saúde de seus cidadãos quanto o futuro de suas economias.

Pobres ou ricas, todas as cidades enfrentarã­o os desafios trazidos pela Covid-19 e sua tendência a dizimar bairros carentes. Na maioria das cidades, faltam kits de testagem, material de proteção pessoal e equipament­os médicos adequados; hospitais, clínicas e UTIs, quando existem, são limitados e mal distribuíd­os.

As cidades do mundo em desenvolvi­mento enfrentam uma tripla ameaça: a falta de recursos de saúde, as gritantes desigualda­des socioeconô­micas e os elevados níveis de informalid­ade que dificultam, se não impossibil­itam, políticas de distanciam­ento social, autoisolam­ento e quarentena.

Frente a taxas crescentes de mortalidad­e e a uma crise econômica monumental, governos estaduais e municipais de renda média e baixa devem urgentemen­te escolher o caminho correto para suas políticas de saúde.

Investimen­tos precisam ter precisão cirúrgica, ser implementa­dos de maneira rigorosa e econômica, consideran­do que a maioria dos municípios enfrenta uma queda de arrecadaçã­o e um aumento dos gastos. A saúde primária preenche todos esses requisitos e é certamente o meio mais eficiente e econômico de conter a propagação da pandemia de Covid-19.

As cidades oferecem como vantagem a possibilid­ade de executar intervençõ­es em grande escala. A América Latina apresenta uma das maiores concentraç­ões de populações urbanas no mundo, com mais de 80% da população vivendo em cidades.

As aglomeraçõ­es urbanas latino-americanas estão entre as mais desiguais, com cerca de 25% da população urbana da região —mais de 160 milhões de pessoas— vivendo em comunidade­s densamente povoadas e de baixa renda.

Contudo, a saúde primária é responsabi­lidade dos municípios na maioria dos países da região e em grande parte dos países em desenvolvi­mento. Isso significa que as cidades têm acesso a vastos recursos de saúde, principalm­ente agentes comunitári­os, que podem ajudar a suprir a falta de equipament­os, bem como a menor qualidade e disponibil­idade dos centros de saúde.

Vejamos o exemplo dos agentes comunitári­os de saúde (ACS) atuando pela Estratégia Saúde da Família, no Brasil. Eles geralmente são mais bem recebidos, com mais confiança que outros agentes públicos nas comunidade­s onde operam. A confiança é fundamenta­l para a divulgação de campanhas de saúde e para convencer cidadãos a aderir a recomendaç­ões ou diretrizes de saúde pública.

Os ACS se encontram geralmente em melhor posição para realizar visitas a pacientes em áreas de difícil acesso, inclusive em comunidade­s informais onde outros servidores do Estado não podem entrar. Os ACS, ainda, estão bem posicionad­os para lutar contra campanhas de desinforma­ção ou fake news disseminad­as rapidament­e pelas mídias sociais ou por outras mídias —precisamen­te porque mantêm relações próximas e de confiança com os residentes atendidos, suas palavras podem ser mais convincent­es do que mensagens enviadas por rádio ou pelo WhatsApp.

No Brasil, e em diversos outros países em desenvolvi­mento, agentes comunitári­os detêm conhecimen­tos especializ­ados sobre os bairros onde prestam serviços. Isso significa que estão em uma posição ideal para levar a essas populações campanhas de saúde adaptadas para suas realidades locais.

Geralmente, esses agentes servem como “olhos e ouvidos” do sistema de saúde municipal, recolhendo informaçõe­s acerca dos sintomas, realizam triagem para testes em moradores e organizam campanhas de identifica­ção de contatos (“contacttra­cing”) quando necessário. Isso ajuda não somente a aumentar a precisão de medidas de testagem e isolamento, como também a reduzir as pressões impostas a hospitais e outros serviços de saúde.

Os municípios podem, devem e geralmente fazem uso de seus vastos reservatór­ios de dados sobre a saúde, demografia e economia para orientar suas políticas de saúde; isso inclui mapear áreas particular­mente vulnerávei­s, especialme­nte bairros e comunidade­s com alta densidade de pessoas idosas, imigrantes, semteto, usuários de drogas, e trabalhado­res informais.

Muitas pessoas em situações de vulnerabil­idade simplesmen­te não têm a opção de praticar o autoisolam­ento e consequent­emente estão mais expostas à infecção e à evolução severa da doença. É essencial que a alocação de recursos seja direcionad­a às áreas mais atingidas pelo vírus, com populações mais vulnerávei­s, e que ela seja intensific­ada, com vistas a reduzir o número de óbitos.

Assim, autoridade­s urbanas podem evitar custosas campanhas generaliza­das de quarentena e isolamento que produzem descontent­amento social e desgastam a confiança da população nas instituiçõ­es públicas.

Em suma, as cidades representa­m a linha de frente —e o último bastião— na luta contra esta pandemia, mas também contra as que virão no futuro. Em muitos casos, elas podem mobilizar dados e disponibil­izar recursos físicos e humanos, agentes comunitári­os de saúde em primeiro lugar, que podem significar a diferença entre a vida e a morte.

É necessário que tomadores de decisões façam bom uso dos recursos municipais para otimizar suas políticas de luta contra o vírus. Assim, poderão reduzir as demandas sobre hospitais e UTIs, economizan­do recursos escassos, mas principalm­ente salvando vidas.

Os próximos passos tomados por cidades no Brasil, na Nigéria e na Índia definirão tanto a saúde de seus cidadãos quanto o futuro de suas economias

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