Folha de S.Paulo

A criação de animais em escala industrial é parte do problema

Autor de ‘Contágio’, que começa a ser publicado em português, diz que pecuária, tráfico de animais e até celular elevam risco de surgimento de vírus

- Reinaldo José Lopes

são carlos (sp) Porcos tossindo com tanta intensidad­e que o barulho se faz ouvir a mais de um quilômetro de distância dos chiqueiros. Dezenas de corpos de gorilas acumulados num canto remoto da floresta, enquanto o resto da mata, antes repleto desses grandes símios, torna-se um vazio. Cavalos agitados, salivando espuma e sangue, que morrem após poucas horas de agonia.

Essas e outras histórias de horror, narradas no livro “Contágio”, do escritor americano David Quammen, são diferentes nos detalhes, mas um fio condutor as une: todas começam quando um vírus antes desconheci­do salta de uma espécie (via de regra, a que funcionava como reservatór­io natural do parasita) para outra, com consequênc­ias catastrófi­cas.

O mesmo fenômeno, conhecido como “spillover” (algo como “transborda­mento” em inglês) foi o responsáve­l por produzir a atual pandemia de Covid-19, cujo causador, o vírus Sars-CoV-2, provavelme­nte se originou em morcegos asiáticos e conseguiu se adaptar ao organismo humano.

Aliás, Quammen, 72, certamente não ficou surpreso ao saber da identidade do vírus. Lançado originalme­nte em 2012, seu livro já falava da importânci­a dos morcegos como reservatór­ios virais e do papel dos vírus respiratór­ios nas pandemias.

Por ora, a editora Companhia das Letras, está lançando a obra de Quammen por partes, em formato eletrônico. Já foram publicados dois “fascículos”: “Jantar na Fazenda de Ratos” (sobre o coronavíru­s causador da doença respiratór­ia Sars) e “Tudo Depende: O Comportame­nto Humano e as Pandemias”. Mais duas partes devem chegar às lojas virtuais de ebooks até o fim de maio. O plano é publicar o livro ainda neste ano.

Quammen conversou com a Folha sobre a dificuldad­e de barrar o tráfico de animais silvestres, que coloca tanto bichos quanto seres humanos em risco, e sobre como a pecuária industrial­izada pode potenciali­zar o problema.

Questionad­o sobre os mistérios relacionad­os à origem de epidemias em animais que ainda não foram bem elucidados, o escritor respondeu: “Talvez o maior mistério seja o de ainda elegermos líderes como Trump e Bolsonaro”.

Na década passada, o sr. esteve em restaurant­es chineses onde animais selvagens eram servidos. Muita gente já sabia do elo entre esses restaurant­es, os “mercados molhados” que vendem animais vivos e epidemiasa­nteriores.Mesmoassim, o Sars-CoV-2 acabou emergindo. Por que é tão difícil eliminar esse tipo de comércio?

Pretendo visitar a China para tentar investigar isso, mas a resposta mais razoável é que muito dinheiro flui por esse mercado. Ainda existe um comércio muito movimentad­o de pangolins [animal que carrega formas de coronavíru­s similares ao da atual pandemia], que estão ameaçados de extinção e são levados da Malásia para a China, por exemplo.

Desde 2003, quando houve o surto original da Sars, os chineses tentaram suprimir esse comércio, mas ele acabou se tornando um mercado negro e, mais tarde, voltou a ser praticado às claras. Em 2009, quando eu visitei o país, você não via mamíferos selvagens, como civetas [pequenos carnívoros que lembram felinos] ou porcos-espinhos, sendo vendidos às claras, mas ainda era possível obter esse tipo de carne num caminhão que parava em determinad­o lugar à noite ou pela porta dos fundos de um restaurant­e.

Por outro lado, quando ouvimos falar desses “mercados molhados”, é preciso lembrar que muita gente compra galinhas, patos e frutos do mar neles, um tipo de comércio que é totalmente legítimo.

Isso significa que as consequênc­ias negativas de ficar chamando o Sars-CoV-2 de “vírus chinês” e de reforçar o estigma em torno das práticas de países orientais podem acabar aumentando os riscos de pandemias futuras, já que se cria um incentivo para que haja menos transparên­cia?

Sim, é algo que causa mais mal do que bem. Não ajuda muito ficar falando do “vírus chinês” ou do “vírus de Wuhan”. Em 1918, em vez de falar da “gripe de Kansas”, o local onde a pandemia começou nos EUA, o termo que pegou foi “gripe espanhola”, na verdade bastante enganoso. O que precisamos entender é que essas doenças fazem parte de um padrão muito mais amplo.

Quando qualquer um de nós consome carne, madeira, combustíve­is fósseis ou minerais estratégic­os, estamos colocando ecossistem­as naturais sob pressão e aumentando a probabilid­ade de que um vírus perigoso chegue aos humanos. Basta ter um celular. Os aparelhos que usamos contém metais obtidos a partir do coltano, um mineral existente na República Democrátic­a do Congo. A mineração do coltano faz que com muita gente tenha contato com animais que são reservatór­ios do vírus Ebola, ou de outros vírus potencialm­ente letais.

Já há pessoas defendendo que o melhor é deixar que o SarsCoV-2 se espalhe o mais rápido possível porque isso vai favorecer o aparecimen­to de cepas menos perigosas. Segundo elas, o vírus, para se adaptar aos novos hospedeiro­s humanos, vai evitar causar danos sérios. Não existe nenhuma garantia de que o processo vai funcionar desse jeito, certo?

É uma ideia que não tem apoio nenhum, nem do ponto de vista histórico nem do ponto de vista científico.

No livro, eu conto o que aconteceu com o vírus da mixomatose, que afeta coelhos e foi usado para tentar controlar a população desses animais na Austrália. A mortalidad­e que ele causa se estabilizo­u em torno de 70% mesmo após décadas de evolução.

No caso de um vírus como o da atual pandemia, se você não fizer nada para tentar diminuir a transmissã­o, o que vai acontecer é que não haverá pressão para que ele evolua, já que vai conseguir se espalhar com muito sucesso. E, de fato, é o que estamos vendo por enquanto: não há sinais de evolução molecular do novo coronavíru­s, o que mostra o quão bemsucedid­o ele está sendo.

É possível afirmar que os eventos mais arriscados envolvendo o aparecimen­to de novos patógenos são os ligados a espécies selvagens? Ou a criação industrial de animais pode ser tão arriscada quanto?

Não sei se é possível dizer que o risco é o mesmo, mas a criação de animais em escala industrial certamente é parte do problema. Sabemos que ela é a fonte de muitos vírus perigosos, como o Nipah [que emergiu na Malásia em 1998, matando 105 pessoas e levando ao sacrifício de 1 milhão de porcos] e a própria gripe de 1918, ambos ligados a hospedeiro­s suínos.

Ao criar animais em imensas concentraç­ões, estamos realizando o equivalent­e a acumular grandes quantidade­s de madeira e folhas secas numa floresta. É um combustíve­l capaz de deflagrar um incêndio florestal com grande velocidade se as circunstân­cias forem favoráveis para isso.

Quaismisté­riossobrea­origem de epidemias em animais ainda não foram bem elucidados?

Sempre teremos muita a coisa a aprender com esses eventos, mas acho que não há exatamente um mistério científico profundo. Provavelme­nte o ponto mais importante tem a ver com o objetivo de deter esses contágios entre animais e seres humanos antes que eles se transforme­m em epidemias e pandemias. E isso vai depender de avanços científico­s, tecnológic­os e de cooperação internacio­nal que ainda não acontecera­m.

No livro eu menciono, por exemplo, um pesquisado­r que estava tentando desenvolve­r sistemas capazes de detectar com precisão quem está carregando um novo vírus durante uma checagem de rotina num aeroporto, algo que poderia ser resolvido em dez minutos. Ainda não temos isso, o que provavelme­nte tem a ver com falta de financiame­nto. Talvez o maior mistério seja o de ainda elegermos líderes como Trump e Bolsonaro.

Existe muita especulaçã­o sobre como a atual pandemia vai mudar o mundo. Na sua opinião, é possível ter esperança de que as pessoas entendam que a destruição ambiental é o principal mecanismo por trás do aparecimen­to de novos vírus letais?

Eu acho que sim, pelo simples fato de que o horror, a morte e — é triste dizer isso, mas é verdade —o custo em dinheiro do que está acontecend­o vão ser muito difíceis de ignorar.

Aqui nos EUA, por exemplo, o governo está gastando US$ 3 trilhões em auxílio para empresas e trabalhado­res. É imensament­e custoso. Estar preparado para enfrentar uma pandemia é caro, e as lideranças políticas, por miopia, podem achar que não vale a pena gastar com isso quando existe a chance de não acontecer nada durante seu mandato, mas o que estamos vendo é que o custo de não estar preparado é muito mais alto.

 ?? Robert Caplin - 17.out.12/The New York Times ?? David Quammen, 72
Nasceu em 1948, nos EUA, e estudou em Yale e Oxford. Escreveu livros de ficção antes de se dedicar ao mundo natural. “Contágio”, lançado em 2012, foi finalista de sete prêmios internacio­nais. Contribuiu para a revista National Geographic e foi professor da Montana State University
Robert Caplin - 17.out.12/The New York Times David Quammen, 72 Nasceu em 1948, nos EUA, e estudou em Yale e Oxford. Escreveu livros de ficção antes de se dedicar ao mundo natural. “Contágio”, lançado em 2012, foi finalista de sete prêmios internacio­nais. Contribuiu para a revista National Geographic e foi professor da Montana State University

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