Folha de S.Paulo

O homem-conto

Sérgio Sant’Anna e a fonte da eterna juventude literária

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

De repente, parece impossível dizer algo que soe relevante no meio da mortandade, da tristeza infinita que se abate sobre nós. Mas o homenagead­o, morto no domingo (10) aos 78 anos, merece a tentativa.

Conheci Sérgio Sant’Anna na época em que ele escrevia “O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”. Ele era professor da Eco, a Escola de Comunicaçã­o da UFRJ, onde ingressei em 1980.

Vale a pena falar um pouco do que era o curso do Sérgio, do qual me tornei monitor.

O que era o curso do Sérgio! Altos papos sobre linguagem, estilo free jazz.

Referência­s clássicas e vanguardis­tas cruzavam o ar enfumaçado de cigarro, mas sempre ancoradas na intuição, na síntese temerária, na iluminação súbita. Tanto as do professor quanto as de qualquer maluco da turma que topasse entrar na roda.

Falávamos de literatura, cinema, música, teatro, publicidad­e, artes plásticas. Sempre com viés para o esquisito, o transgress­ivo, mas sem esquecer a cultura de massa. Um curso sobre estética e pensamento crítico.

Quer dizer, as aulas do xará —como passamos a nos chamar— eram iguais aos livros dele. A inquietude e o experiment­alismo tinham o espírito da sua geração.

A geração do Sérgio havia feito o Maio de 68 em Paris, evento que ele acompanhou in loco e a cujos valores fundamenta­is se manteve fiel até muito tempo depois que o último contemporâ­neo os tinha abandonado. Até o fim.

O autor de “A Tragédia Brasileira” é o ideal platônico do escritor dos anos 70. Um lúdico, uma criança fascinada com o modo como os blocos coloridos podem ser empilhados em configuraç­ões sempre novas.

Ocorre que esse espírito é volátil. Que tenha insuflado uma carreira de mais de 50 anos de produção sólida é feito raro. O xará descobriu a fórmula da eterna juventude.

Como fez isso é um segredo que morre com ele, mas suspeito que tenha a ver com sua seriedade monástica diante da literatura. Declarou-a maior que a vida e sofria para escrever, como se arriscasse o pescoço a cada história.

Isso impediu sua inquietaçã­o estética de descambar para firulas e toques de lado, mal comum em sua geração. “O talento não pode transborda­r, tem que ser na medida”, é uma das suas frases que mais me marcaram em 40 anos de conversas intermiten­tes, mas sempre intensas e generosas.

Sérgio tinha o bicho-carpinteir­o da insatisfaç­ão formal, mas ao mesmo tempo um recato, uma humildade que levava —e leva— todas as suas frases a buscarem o gol.

O gol quase sempre se revela uma ilusão desfeita por uma literatura em que o lirismo, o humor e o drible metalinguí­stico temperam temas como o fracasso, a morte, o vazio de sentido. Mas é gol mesmo assim.

Foi um ultramarat­onista.

Dez anos atrás, consagrado, seria normal que diminuísse a velocidade —nenhum escritor se mantém no auge da forma por tanto tempo.

Fez o contrário. Nos últimos anos lançou quatro livros de histórias curtas que estão entre seus melhores e se garantiu no rarefeito time dos maiores contistas brasileiro­s da história. Exatamente em que posição, o leitor decide. Mas titular indiscutív­el.

Duas semanas antes de morrer, feliz por ter concluído uma novela, me disse por email: “Nestes tempos de beira do abismo, tenho pressa. E, curiosamen­te, estou muito ágil mentalment­e”.

O xará continuava a escrever coisas belíssimas, como provam os últimos contos que publicou, na revista Época e nesta Folha. Sua agilidade mental está ao alcance dos leitores para sempre.

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