Artista trancado em galeria pinta versão brasileira do fim do mundo
Impedido de voltar para casa devido à pandemia, carioca Edu de Barros vive entre os afrescos de horror que criou
são paulo No evangelho segundo o artista Edu de Barros, no fim dos tempos anjos azuis tocarão as trombetas do apocalipse enquanto corpos cairão, degolados. Latas de cerveja barata que repousam sobre mesas de plástico voarão pelos ares. E as musas, com os seios à mostra e as bocas cobertas por máscaras cirúrgicas, baterão panela.
As imagens se espalham pelas paredes e pelo teto da galeria Sé, nos Jardins. Começaram a ser pintadas há dois meses, quando Barros, 27, chegou a São Paulo para montar sua primeira mostra ali. Até que o caos imperou também fora dos desenhos, com a chegada do novo coronavírus ao Brasil.
A pandemia impediu que a exposição fosse inaugurada —e dificultou a volta de Barros e do também artista Raoni Azevedo, que o ajudava na montagem, para o Rio de Janeiro, onde moram. Com o término da estada num Airbnb no final de março, eles se mudaram para a galeria.
Desde então, vivem ali. Dormem em colchões estirados no segundo andar da exposição —num retrato que lembra a carta do Mundo, do tarô, a irmã de Barros, Gigi, os espreita da parede. Os andaimes, alugados para pintar o teto, viraram equipamentos de ginástica. Cadeiras de plástico coloridas que serviam de base para uma instalação fazem as vezes de varal.
Só o chuveiro do antigo apartamento faz falta, conta a dupla. Eles tomam banho frio, de balde, no quintal.
“Foi engraçado. Porque o meu trabalho sempre falou mais de um lugar que as pessoas viam como ficcional”, diz Barros, sobre a coincidência entre a hecatombe que retrata e a incerteza que reina lá fora.
“Mesmo que não seja o fim do mundo, a sensação é muito propícia para a minha obra acontecer. Como estava trabalhando já algum tempo com esse tema, quando um clima desses se instaura, parece que estava me preparando para isso”, diz, sem medo do epíteto que assumiu —“o profeta”.
Barros diz que o interesse por narrativas bíblicas remonta à infância, às aulas de catequese. “Eu tinha um amigo imaginário que era Jesus”, conta. Mas que símbolos do tipo só começaram a impregnar seu trabalho há quatro anos.
“Parece que foi o início de uma ‘assuntação’. Comecei a entender que existia um interesse ali escondido, ao mesmo tempo em que acompanhava o clima político no Brasil.”
A união dos fatores resultou no que Barros chama de
“apocalipse verde e amarelo”, uma “liturgia dos dias de hoje” que na mostra ele retrata em placas de gesso seco, drywall, aplicadas sobre as paredes da galeria —os afrescos renascentistas originais eram feitos sobre gesso úmido.
Ali, se desenrola um armagedom, sim, mas à brasileira. Uma camisa da seleção voa entre querubins que se engalfinham nos céus. Um anjo negro bebe cerveja, garrafa na mão.
E por aí vai, passagens bíblicas se misturando a um cotidiano tipicamente carioca, observado no centro, onde Barros mantém um ateliê, e na favela da Rocinha, onde vive. O exercício, declara o artista, consiste em “enxergar coisas banais como sublimes”.
São elementos populares que, incorporados, tensionam um processo de higienização típica na arte, diz a organizadora da exposição, Clarissa Diniz. “A arte costuma reconhecer esses objetos tirando os sujeitos que se relacionam com eles. Mas as obras do Edu vêm impregnadas”, afirma ela, lembrando uma espécie de assemblage em que Barros justapõe santinhos e ex-votos a panfletos publicitários.
Ela e Barros se conheceram em outra empreitada eclesiástica do artista, por assim dizer. Ele foi um dos que, ao lado de Azevedo e de Maxwell Alexandre —o enfant terrible da cena carioca da vez—, ajudou a pôr de pé a Igreja do Reino da Arte, há cerca de três anos.
Definido como um “modelo open source”, o projeto busca unir pessoas em geral à margem do circuito de museus, galerias, curadores e colecionadores para focar o que interessa —a arte.
Com o tempo, criou um léxico particular, em que residências viraram retiros espirituais, mostras, dízimos e oferendas, e reuniões, seitas.
Se o próprio mundinho da arte a princípio enxergava tudo como uma ironia elaborada, Azevedo diz que a ideia vai além disso. “Para a gente, sempre foi uma tensão entre o que é igreja e o que é a arte.
E elas não são tão diferentes —há os bispos, estamos morando agora num templo [a galeria]”, exemplifica.
Quando se fala de Barros, a relação é ainda menos calcada numa crítica institucional e mais numa questão de fé.
Ele define o ato de desenhar como uma meditação. Alimenta suas cenas com leitura de filosofia hermética e da própria Bíblia, cujos capítulos ele e Azevedo descrevem com uma intimidade espantosa para dois jovens que não se dizem religiosos.
“De todos os membros da Igreja, ele é quem mais exercita uma reverência a fé. É menos sobre dogmas e mais sobre crença e a criação de universos e imaginários em torno dela”, afirma Diniz.
Ela acrescenta que Barros sempre mantém um respeito aos símbolos do outro, importante num momento em que muitos ataques à arte vistos no país recaem sobre a acusação de vilipêndio religioso.
Além disso, talvez “o profeta” tenha de fato capacidade de ver além, mesmo que não no futuro. “Acho que o trabalho do Edu faz a gente se perguntar sobre que mundo está ruindo, isso para nos desfazermos dessa pretensão que a cena da arte gosta de ocupar, de que somos o mundo inteiro”, continua Diniz.
Sem poder receber visitas, mas transmitindo todo o processo criativo ao vivo no seu site, Barros conta que ele e Azevedo hoje repensam as possibilidades criativas da exposição. Substituindo as placas de gesso já usadas por novas, pretendem multiplicar a quantidade de pinturas realizadas.
Designers de formação, os dois também já inventaram jeitos de levar as imagens do apocalipse para fora da galeria. O primeiro deles, já lançado e disponível no Instagram de Barros (@edudebarros_), é um filtro dinâmico de selfies, em que, à medida que se move a câmera, a pintura é mostrada em 360 graus.