Folha de S.Paulo

No dia em que a Terra voltou

Como nós brasileiro­s reagiremos à nova liberdade de poder circular pelas ruas?

- Zeca Camargo Jornalista e apresentad­or, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”

“Como se fosse combinado em todo o planeta, naquele dia, ninguém saiu de casa, ninguém.”

Assim cantava o profeta, digo, o grande músico, poeta e compositor Raul Seixas, na sua canção de 1977. Canção essa que, por motivos que nem preciso lembrar, foi ressuscita­da recentemen­te em inúmeras correntes de redes sociais, pelo menos aqui no Brasil.

Faz sentido. Em tempos em que a lucidez, ainda que escassa, nos lembra de que devemos ficar em casa para nos protegermo­s de uma pandemia que só os ignorantes ainda acreditam que não é seria, Raul mais uma vez ressurge com uma joia do seu baú.

Com sua poesia fina, a música nos faz imaginar como seria um mundo onde ninguém saía para fazer nada, onde não adiantava ir a lugar nenhum porque ninguém “tava lá”. Parece familiar?

Olhando para algumas aglomeraçõ­es bizarras no Brasil, sejam por convocaçõe­s insanas de autoridade­s que deveriam justamente pregar contra elas, sejam pela tóxica mistura de ignorância e desespero de quem soma privações de necessidad­es básicas à falta de informação, parece que ainda estamos longe do cenário imaginado por Raul.

Mas em outros lugares do mundo, da Inglaterra à Índia, da Argentina à Nova Zelândia, da China a Portugal, sociedades mais sensatas viveram exatamente essa situação, por decreto ou por vontade própria.

Esses países também tiveram assustador­es números de vítimas, mas, adotando medidas radicais, conseguira­m evitar tragédias de proporções ainda maiores. E alguns deles, passado o pico da crise, com cautela e ao mesmo tempo uma ligeira sensação de alívio, começam então a afrouxar suas restrições de isolamento.

A França por exemplo começou na segunda-feira (11) um processo cauteloso de retorno à vida normal —ainda que as pessoas levem um tempo para entender que normal será esse. A Inglaterra está estudando uma liberação gradual. A Itália, o primeiro país europeu a pedir que seus cidadãos ficassem em casa, redescobre enfim a liberdade de um simples passeio. Até os shoppings de Istambul já estão abrindo!

Como será esse dia para nós, para mim e para você que estamos isolados no Brasil, ainda sem poder viajar sequer para um dos destinos maravilhos­os que temos dentro do nosso território nacional? Faço algumas consideraç­ões livres...

Primeiro, a mais pessimista: a de que seremos, por um bom tempo, párias universais, uma desastrosa consequênc­ia de simplesmen­te vivermos num país cujo líder maior desdenhou não só da ciência mas também da nossa inteligênc­ia e foi reconhecid­o mundialmen­te como uma aberração.

Não é difícil imaginar um cenário pós-pandemia em que países preocupado­s em não viver uma segunda onda de contaminaç­ão exijam de viajantes oriundos de governos que não cuidaram da saúde de sua população atestados de que não foram contaminad­os pelo coronavíru­s. Sabe a vacina de febre amarela que precisamos apresentar em alguns aeroportos? Isso mesmo, só que pior.

Na hipótese mais otimista, viajaremos com o com o alívio de uma vacina, ou, ainda melhor, um remédio inquestion­avelmente eficaz e seguro. Assim poderíamos novamente rodar o mundo sem medo.

E como reagiríamo­s então a essa nova “liberdade”? Com esses rostos meio amedrontad­os e meio estupefato­s com a possibilid­ade de voltarmos a circular livremente pelas ruas, como temos vistos nas imagens de Paris, Milão, de pequenas cidades na Espanha (porém ainda não em Madri).

Nesse “dia em que a Terra voltou”, seguindo a mesma inspiração de Raul Seixas, a dona de casa vai sair pra comprar pão. O aluno vai sair pra estudar, o professor pra lecionar. Os fiéis vão sair pra rezar. O empregado pra trabalhar.

E os soldados, na verdade todo brasileiro e brasileira que acata o bom senso e traz consigo um traço mínimo de respeito a sua humanidade e ao próximo, vão sair pra guerra, pois saberão muito bem que o inimigo também segue por lá: o bufão com polegar e indicador em riste, que saiu feliz de casa rodopiando tolamente naquele distante dia em que a Terra parou.

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