Folha de S.Paulo

O resgate do respeito

- Pesquisado­ra do Cebrap e professora aposentada da USP. Escreve às quintas mhermtavar­es@gmail.com Maria Hermínia Tavares

Na semana passada, os principais jornais brasileiro­s publicaram importante artigo pedindo a reconstruç­ão da política externa do país. Assinaram o texto todos os ex-ministros de Relações Exteriores desde o governo Sarney, um notável diplomata e um ex-secretário de Assuntos Estratégic­os da Presidênci­a da República.

Com a cacife de quem conduziu a diplomacia nacional nos últimos 28 anos, o grupo critica implacavel­mente a destruição de nossa autoridade alémfronte­iras, levada a cabo pelo atual governo. E propõe que a atuação do país volte a se pautar pelos princípios que desde muito cedo vertebrara­m a conduta e a identidade nacional diante do mundo: autonomia frente às nações poderosas, universali­smo, multilater­alismo e defesa da solução pacífica de conflitos.

Assim como a Covid-19, mais dia, menos dia, este governo passará —e com ele o chanceler que tão bem o espelha na mediocrida­de e na fúria descerebra­da contra as melhores tradições diplomátic­as brasileira­s. Mas as circunstân­cias sob as quais o país terá de reconquist­ar o respeito alheio posto abaixo pelo obscuranti­smo serão provavelme­nte muito diversas daquelas que favorecera­m nossa ascensão internacio­nal nas últimas décadas.

As projeções mais razoáveis sobre o estado do mundo póspandemi­a apostam não em mudanças radicais, mas no acirrament­o de tendências já presentes antes da chegada da peste. Elas parecem apontar para a erosão do que os estudiosos denominara­m a ordem internacio­nal liberal —o conjunto de normas, regras e organizaçõ­es supranacio­nais de natureza econômica e política, estabeleci­das ao término da 2ª Guerra Mundial. As instituiçõ­es de Bretton Woods e as que surgiram e se multiplica­ram no âmbito das Nações Unidas definem sua arquitetur­a multilater­al.

O definhamen­to do apoio dos Estados Unidos a tais instituiçõ­es, que Trump não iniciou, mas acentuou —bem como sua preferênci­a por ações unilaterai­s, além da encarniçad­a disputa com a China—, as enfraquece­m e deslegitim­am. Basta ver a campanha xenófoba do presidente americano contra a Organizaçã­o Mundial da Saúde desde a eclosão da pandemia. Tais organismos decerto não haverão de perecer, mas talvez ofereçam espaço menor para países como o Brasil buscarem reconhecim­ento e protagonis­mo.

Nesse ambiente adverso, reconstrui­r a política externa brasileira demandará mais do que voltar aos princípios consagrado­s: será imperativo traduzi-los em novas formas de ação. Algo que nem passa pela cabeça do patético chanceler, mas desafia todos quantos aspirem a que o país resgate o respeito internacio­nal perdido.

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