Folha de S.Paulo

Coisa de Titãs

Nestes tempos de lei seca esportiva, fica evidente a falta que o esporte faz

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

O distanciam­ento social, que está longe de ser isolamento, começou na Pensão Simpatia, minha casa, há 71 dias. Numa conta rápida, já se vão quase dois meses e meio em que a única atividade social possível é a corrida rápida ao mercado e, vez por outra, uma visita relâmpago à farmácia.

Sinto uma falta imensa de entrar numa padaria com gente fazendo do café um pretexto para se encontrar, do pão francês quentinho, dos abraços e sorrisos trocados no encontro com amigos, de chegar a universida­de e cruzar com colegas e estudantes, gente sempre tão cheia de vida e energia.

Sempre gostei de abraços, expressão maior de afeto e de amizade. O aceno ou o aperto de mãos são ótimos indicadore­s de um tipo de contato social pautado pela formalidad­e, ainda que com toque.

Enfim, esses quase dois meses e meio distante daquelas e daqueles com quem me relaciono socialment­e com abraços fizeram e fazem pensar e repensar a dimensão simbólica dos gestos e da liberdade.

Certa vez, li um texto nesta Folha do psicanalis­ta Contardo Calligaris sobre a restrição de liberdade que me deixou muito inquieta. Falava sobre o que é perder a mobilidade, a possibilid­ade de ir e vir para onde se deseja, e o impacto disso na subjetivid­ade humana, citando para isso o livro “Trem Noturno para Lisboa”.

Isso foi durante as prisões do mensalão e, desde então, aquela reflexão sobre o livre arbítrio não me abandona. Quando eu podia sair no momento em que bem entendesse, essa reflexão me parecia mais filosófica do que agora, em que não só não posso tomar um chá na padaria aqui perto de casa, como também não posso acompanhar nenhum campeonato das modalidade­s esportivas que mais aprecio.

Ou seja, em tempos de isolamento somos levados a prestar atenção em coisas que antes pareciam absolutame­nte naturais, sem jamais terem sido.

Nestes tempos de lei seca esportiva, fica evidente a falta que o Esporte, com E maiúsculo, faz. Comerciali­zado como mercadoria barata por uns ou banalizado como uma competição por outros, parecia tão simples de se ter, e tão óbvio de se ver, que nem se cogitava a possibilid­ade de ele não existir. Agora, diante de sua ausência, podemos afirmar que o esporte é, certamente, muito mais do que uma competição.

O esporte é um fenômeno tão fundamenta­l à sociedade como a arte. Sua potenciali­dade reside na transcendê­ncia do humano pela superação do limite do corpo e da alma. De quem se dedica à busca pela perfeição do gesto que produz o recorde, a vitória e a derrota.

Apreciar um jogo com essa disposição requer tanta educação quanto apreciar um quadro de Dalí ou Duchamp, uma poesia de Augusto de Campos, uma peça de Ionesco, uma composição de Stravinsky, Arrigo Barnabé ou Frank Zappa, ou ainda um filme de Buñuel ou Godard.

A incapacida­de de reconhecer a beleza do movimento reduz o esporte ao resultado do jogo, perdendo assim todo o complexo simbólico que cerca essa criação humana.

E então, temos diante de nós uma tríade perfeita: educação, esporte e arte. Não é à toa que, nos regimes totalitári­os, se tenta cooptar artistas, atletas e intelectua­is para que estes usem a potenciali­dade de sua criação na veiculação de ideias que fogem aos parâmetros do diálogo democrátic­o.

E, diante da impossibil­idade da cooptação, destroem-se escolas, ateliês, produtoras, clubes e times na tentativa de punir a expressão livre e criadora.

Se os Titãs já proclamara­m que bebida é água e comida é pasto, eu diria que a gente não quer só comer, a gente quer comer e poder jogar.

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