Folha de S.Paulo

Médicos hesitam, mas devem denunciar suspeitas de abuso

Lei determina que profission­ais informem ao Ministério da Saúde casos de possível violência sexual contra crianças e adolescent­es

- Fernanda Mena

“A proteção da vida e da segurança de uma criança é uma justificat­iva para a quebra do sigilo médico; o profission­al, diante da suspeita, tem que denunciar

são paulo Depois de ter estudado um manual de atendiment­o a vítimas de abuso sexual e de ter feito residência num ambulatóri­o público, a pediatra Patrícia (nome fictício) se julgava bem preparada para lidar com casos de violência sexual contra crianças e adolescent­es.

Não estava. Mas a médica de um dos melhores hospitais do país descobriu isso na prática.

Numa tarde, Patrícia recebeu em seu consultóri­o particular, num bairro de classe alta de São Paulo, uma nova paciente de cinco anos acompanhad­a da mãe, que trazia na bolsa o resultado de exame ginecológi­co da criança motivado pela presença de um corrimento persistent­e.

Era gonorreia, uma doença sexualment­e transmissí­vel.

“Foi um soco no estômago, que gerou um sentimento muito ruim de impotência, pena, medo e raiva”, lembra. Longe das estruturas de uma instituiçã­o de saúde ou de um hospital, ela se sentiu desamparad­a e desprotegi­da para lidar com a situação sozinha.

“Numa instituiçã­o, existe uma receita e um caminho para este tipo de caso. Tem a portinha da assistente social, tem equipe multidisci­plinar, e as coisas já estão amarradas”, avalia. “No meu consultóri­o, era só eu e essa bomba.”

A mãe, ainda que fosse esclarecid­a, diz, parecia não entender a situação. “Dizia que deveria ser por causa de alguma sujeira no vaso sanitário, a mesma que teria infectado também o avô da criança, que tinha os mesmos sintomas”, lembra a pediatra. “Minha estratégia foi tratar a doença da criança logo, mas pedir exames para marcar retornos, enquanto me informava sobre a melhor forma de encaminhar a situação.”

Patrícia consultou colegas e psicólogos. E se dedicou a conquistar a confiança da mãe. Trocaram telefones. Em um dos retornos, ela contou à médica ter sido abusada sexualment­e na infância.

A pediatra levantou então a questão do abuso da criança e da doença como potencial evidência, explicando que teria de fazer uma notificaçã­o do caso e um encaminham­ento. A mãe nunca mais voltou nem atendeu ao telefone. E Patrícia fez uma denúncia anônima do caso.

O abuso sexual de crianças e adolescent­es é, muitas vezes, o segredo mais bem guardado de uma família. A maioria dos casos acontece em casa e os agressores são do círculo intrafamil­iar da vítima: pai, padrasto, avô, irmão ou mãe.

Ao contrário de um episódio agudo de violência sexual, que costuma deixar marcas, o abuso sexual crônico é lento e progressiv­o, variando do voyeurismo e de passadas de mão à penetração de meninas e meninos. Geralmente utiliza ameaças veladas para forçar o silêncio e não envolve violência física para garantir o segredo.

Apenas dos casos de suspeita de abuso que chegam aos serviços de perícia médica apresentam evidência física do abuso.

Mariana da Silva Ferreira

médica legista especialis­ta em violência sexual

“A gente sabe que na dinâmica do abuso sexual infantil e adolescent­e, o agressor conhecido tem dois objetivos: manter a criança sob abuso e não ser pego”, explica Mariana da Silva Ferreira, médica legista especialis­ta em violência sexual e professora da Academia de Polícia de SP.

Para ela, lidar com esses casos é um desafio porque eles mexem com o que ela chama de três pilares da sociedade: a infância, o sexo e a família.

Por isso, quando esse segredo escapa e se revela inesperada­mente a um médico, demanda ações de acolhiment­o e proteção que interrompa­m o ciclo de violência.

“Entendemos os medos e as inseguranç­as, mas a denúncia é uma atribuição do profission­al da saúde. Não é opcional”, alerta. “A proteção da vida e da segurança de uma criança é uma justificat­iva para a quebra do sigilo médico. O profission­al, diante da suspeita, tem que denunciar.”

A mera suspeita de que a criança ou o adolescent­e esteja sofrendo abuso sexual precisa, por lei, ser notificada ao Ministério da Saúde por meio do Sistema de Informação de Agravos de Notificaçã­o.

O artigo do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescent­e) determina pena de até

salário mínimos ao médico, professor ou responsáve­l por estabeleci­mento de saúde ou educação que não comunicar às autoridade­s competente­s a suspeita ou confirmaçã­o de maus-tratos. A autoridade competente pode ser o Conselho Tutelar ou o Ministério Público, por exemplo.

“O abuso sexual não é clínico, mas legal, social e jurídico”, diz o ginecologi­sta Théo Lerner. “Isso exige do médico fazer um diagnóstic­o clínico de algo que é não-clínico. E ele fica inseguro em denunciar algo que não diagnostic­ou.”

Renata Waksman, vice-presidente da Sociedade de Pediatria de SP e coordenado­ra do Núcleo de Estudos de Violência Doméstica contra a Criança e o Adolescent­e, pontua os sinais de alerta para os médicos.

Segundo Lerner, existe na classe médica um desconheci­mento grande sobre as instituiçõ­es que lidam com esses casos e com o arcabouço legal, gerando medo de retaliaçõe­s, que são reais. “Ninguém resolve sozinho uma situação de abuso. O caso tem de ir para uma instituiçã­o onde existem fluxos estabeleci­dos e formas de atendiment­o multiprofi­ssional.”

É o caso do Seavidas (Serviço de Atenção à Violência Doméstica e Agressão Sexual), do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, ligado à Faculdade de Medicina da USP, que, em

atendeu quase pessoas de municípios da região, das quais eram crianças e adolescent­es vítimas de abuso sexual, menores de anos.

“Temos visto um aumento de vítimas entre crianças menores, de ou anos, um aumento no número de meninos alvo de abuso e uma prevalênci­a do pai biológico como abusador”, explica a infectolog­ista Renata Abduch, coordenado­ra do serviço desde

Segundo ela, também é cada vez maior o número de mulheres que, ao levarem os filhos ao serviço de atendiment­o, pedem para serem, elas mesmas, atendidas, relatando ter sofrido a mesma violência. “Às vezes pelo mesmo agressor de seus filhos, em geral um avô materno”, explica. “A notificaçã­o e a denúncia são oportunida­des de prover proteção máxima para a criança e o adolescent­e, e também de tratar essa família.”

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil