Folha de S.Paulo

Tiroteios param postos de saúde e até doações no RJ

Ações policiais como a que causou a morte de João Pedro, 14, persistem

- Júlia Barbon Colaborou Ana Luiza Albuquerqu­e

Em dois meses de pandemia, ocorreram em média cinco tiroteios ou disparos por dia perto de unidades de saúde na região metropolit­ana do Rio, segundo a plataforma Fogo Cruzado.

No fim de abril, voluntário­s que entregavam 400 cestas e kits de higiene no Complexo do Alemão se viram em meio a tiros de uma ação policial.

Em poucos segundos, o dia de André Dread, 38, passou da luta ao luto. Ele e os colegas já alcançavam a porta do carro para ir embora após longas horas entregando 200 cestas básicas à sua comunidade, na Cidade de Deus, quando um tiroteio começou.

O amigo motorista tentou dar ré, mas a roda prendeu numa vala. A quantidade de tiros já não permitia mais ficar na rua, e eles se abrigaram na casa de moradores. Quando os disparos cessaram, desesperad­o e incrédulo, ele saiu e parou na frente do caveirão da Polícia Militar que passava.

“Comecei a gritar que era morador, ator, que estavam fazendo uma operação no meio de uma ação solidária”, diz. “O dia foi muito bacana, nos emocionamo­s com várias falas de gente que não tinha um arroz em casa. Naquele momento eu pensei: não é possível que estão fazendo isso.”

Essa operação da PM e da Polícia Civil, que aconteceu na noite de quarta (20), terminou com a morte de João Vitor Gomes da Rocha, 18 —a polícia afirma que ele fazia parte de uma quadrilha de roubos e estava armado, mas a família nega e diz que ele saiu para retirar uma cesta básica.

Não foi a primeira vez que ações policiais e tiroteios, que persistem mesmo durante a crise do coronavíru­s, paralisara­m doações em favelas do Rio de Janeiro. Também não é raro que confrontos como esse interrompa­m atendiment­os em unidades de saúde.

Em dois meses de pandemia, ocorreram em média cinco tiroteios ou disparos por dia próximo a unidades de saúde na região metropolit­ana do Rio, segundo levantamen­to da plataforma colaborati­va Fogo Cruzado, que considera tiros reportados em um raio de até 300 metros dos locais.

No total, foram 302 ocorrência­s dessas registrada­s de 14 de março a 13 de maio, quando já vigoravam restrições de circulação no estado. Isso significa que 577 unidades públicas e privadas (14% do total) foram afetadas no período.

A zona norte da capital foi a pior região, com 81 episódios com disparos, sendo que uma única clínica da família, na Vila Kennedy, registrou 53

deles. Já os tiroteios em geral, não só em volta de unidades de saúde, aumentaram de 865 nos dois meses pré-pandemia para 992 nos dois meses seguintes.

Unidades de atenção primária localizada­s em território­s considerad­os de risco seguem uma espécie de “protocolo de guerra” no Rio, criado pela Secretaria Municipal de Saúde e pelo Comitê Internacio­nal da Cruz Vermelha, baseado na experiênci­a de países em conflito.

Dependendo do clima da comunidade, o local fica em estágio vermelho (a unidade fecha), amarelo (atendiment­os domiciliar­es são suspensos) ou verde —em 2019, foram 1.481 situações amarelas ou vermelhas. As ambulância­s do Samu, que já têm dificuldad­e para chegar, não entram quando há confrontos.

Dados compilados por um grupo de pesquisado­res do Observatór­io da Segurança do RJ, ligado à Universida­de Cândido Mendes, também mostram que as operações policiais no estado e as mortes decorrente­s delas, que haviam diminuído no início do isolamento social, voltaram a subir.

Os óbitos nas incursões monitorada­s despencara­m 83% nas duas últimas semanas de março (de 23 para 4), mas cresceram 32% juntando abril e os primeiros 19 dias de maio (de 49 para 65), sempre em comparação com o mesmo período do ano passado.

“Nos surpreende­mos com os dados, o esperado seria uma queda. Políticas de educação, de economia, tudo mudou,

mas a polícia do Rio não muda. Eles passam dois recados muito fortes: não vamos mudar e não nos preocupamo­s com vidas em favelas, para nós o importante é combater o crime, mesmo às custas de tiroteios e mortes”, avalia a socióloga Silvia Ramos, coordenado­ra do Observatór­io.

A PM diz que as operações mensais se mantiveram no mesmo patamar no primeiro quadrimest­re deste ano, mas não respondeu quantas foram. Também afirma que as atividades de enfrentame­nto ao crime organizado não sofreram alterações com a pandemia.

Isso se reflete nas comunidade­s. Na sexta (15), uma ação da PM no Complexo do Alemão terminou com 12 mortos. Na segunda (18), o menino João Pedro Matos, 14, foi baleado dentro de casa após a invasão da Polícia Federal e da Polícia Civil em São Gonçalo.

No mesmo dia, familiares relatam que Iago César Gonzaga, 21, foi torturado e morto durante operação da PM em Acari. Na quinta (21), foi a vez de Rodrigo Cerqueira, 19, também morto durante uma ação que interrompe­u a distribuiç­ão de cestas básicas no Morro da Providênci­a. Moradores contam que ele trabalhava em uma barraca quando foi baleado, mas a PM o trata como suspeito e alega que agentes foram recebidos a tiros.

O Complexo do Alemão viveu situação parecida no fim de abril, quando voluntário­s que entregavam 400 cestas e kits de higiene se viram no meio de um tiroteio.

Eles dizem que o caminhão de doações foi confundido com um veículo roubado por policiais. A PM nega e afirma que uma equipe foi atacada durante uma operação, mas não revidou.

Sobre a frequência de operações em tempos de pandemia, a Polícia Militar do Rio ressaltou que, com o decreto governamen­tal para conter o avanço do coronavíru­s, a corporação precisou ampliar seu planejamen­to da área operaciona­l.

“Além do policiamen­to preventivo e ostensivo, os policiais militares estão atuando em bloqueios urbanos e rodoviário­s para atender as demandas da norma que estabelece­u o isolamento social. A ampliação não trouxe qualquer prejuízo para as atividades rotineiras da corporação.”

Também respondeu que as operações são sempre planejadas com informaçõe­s da área de inteligênc­ia e que “o saldo operaciona­l demonstra a dimensão do desafio”. Até 20 de maio, a PM diz que apreendeu mais de 2.800 armas de fogo, entre elas 145 fuzis, e encaminhou mais de 13 mil suspeitos a delegacias.

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Ricardo Moraes - 15.mai.20/Reuters Moradores carregam corpos de pessoas baleadas durante operação policial no Complexo do Alemão, no Rio, que terminou com 12 mortos
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Ricardo Moraes - 19.mai.20/Reuters Marcas de tiro na casa onde morreu João Pedro Matos Pinto, 14

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