Folha de S.Paulo

Oi, Folha, tudo bem?

Esforço do jornal em combater fake news é sabotado por algoritmos do marketing

- Flavia Lima

Venho recebendo mensagens de leitores me recomendan­do conteúdos que seriam mais esclareced­ores do que as reportagen­s que o jornal produz.

“Desculpe-me a franqueza, mas a mídia ou está vendida ao sistema ou é muito incompeten­te. A cura do Sars-CoV-2 já existe há mais de 70 anos. Estão escondendo isso do povo e levando-o a morrer desnecessa­riamente”, disse-me um leitor ao recomendar um vídeo.

No vídeo, um homem que se diz médico, pesquisado­r e cientista faz propaganda da famosa hidroxiclo­roquina. Medicament­o que, segundo ele, existe há 70 anos e “cabe como uma luva” no combate à Covid-19.

“E, quando falarem por aí, na mídia, mal do remédio, dizendo que ele tem os efeitos colaterais terríveis, isso é mentira.”

Com mais de 32 mil visualizaç­ões, o homem oferece também um curso por R$ 39,90 e pede ajuda ao canal por R$ 7,99.

A estratégia deve estar funcionand­o. O vídeo é patrocinad­o por marcas conhecidas, prova de que se pode ganhar dinheiro com a desinforma­ção.

E se o leitor encontrass­e, em um desses canais, um anúncio da Folha?

Na segunda (18), um perfil no Twitter alertava: “Oi Folha, tudo bem? Andei pesquisand­o por aí e descobri um anúncio de coleção sua no site que mais propalou fake news durante a eleição de 2018. Um anúncio de mídia informativ­a em um site de desinforma­ção não dá, né? Pls, considere bloquear”.

O anúncio de uma coleção de livros da Folha foi encontrado no Jornal da Cidade Online, portal acusado de produzir conteúdo ofensivo e desinforma­ção. Seu editor-chefe, José Tolentino, disse à Folha que o veículo sofre “ataques sórdidos” e que é independen­te.

O aviso à Folha foi feito por um movimento criado em 2016 nos EUA e chamado “Sleeping Giants”. Há poucos dias no Brasil, o grupo diz que busca alertar empresas que financiam, involuntar­iamente, por meio de anúncios, sites de extrema direita que publicam desinforma­ção e preconceit­o.

Curiosamen­te, a Folha anunciou num site que produz conteúdo

contra o jornal. Em uma das entrevista­s veiculadas, feita com deputadas bolsonaris­tas durante a CPI contra fake news, uma repórter do site pergunta: “É mais uma fake news publicada pela Folha; já basta, né?”.

Parece contraditó­rio que a Folha, que se posiciona de forma enfática contra conteúdo falso, ao mesmo tempo promova publicidad­e num canal em que, provavelme­nte, não vai conquistar assinantes nem leitores para as suas coleções.

Para entender o que aconteceu, é preciso saber que, hoje, a publicidad­e não se resume mais à compra tradiciona­l de espaço para anúncios onde a empresa quer ver a sua marca.

Com a proliferaç­ão de sites na internet, essa escolha se tornou muito mais difícil e custosa. Para facilitar, empresas, como o Google, oferecem um sistema de distribuiç­ão de banners em sites e blogs, a chamada “mídia programáti­ca”.

O anunciante define as caracterís­ticas do público que quer atingir e pode escolher sites em que não quer aparecer—o que precisa ser feito olhando endereço por endereço.

Mas um processo mais simples permite que o anunciante exclua categorias inteiras de sites (de sexo ou violentos).

A categoriza­ção, porém, segue informaçõe­s dadas pelo próprio dono do site. Além disso, o ato de excluir uma categoria (política, por exemplo) significa abrir mão de todo o universo de sites ligados ao tema.

A audiência move todo o processo, que parece bom para o

Google, que tem a ferramenta, para as empresas, que automatiza­m a distribuiç­ão de anúncios e ganham escala para a marca. E para os sites.

Profission­ais do meio ouvidos pela coluna dizem que, no geral, do valor desembolsa­do pelo anunciante, a agência de publicidad­e fica com um percentual em torno de 10% a 15% para gerenciar o processo. Algo entre 5% e 15% vai para o Google e o resto é distribuíd­o para centenas ou milhares de sites, que ganham por clique.

Após o ocorrido, a Folha disse: “Por um erro de procedimen­to, anúncios da Coleção Folha foram direcionad­os ao site de fake news Jornal da Cidade Online. Após alerta, nossa equipe de marketing suspendeu veiculação de campanhas em sites de terceiros e está revisando domínios bloqueados”.

Por meio de porta-voz, o Google diz que as plataforma­s oferecem controles robustos que permitem o bloqueio de categorias de assuntos e sites específico­s, além de gerarem relatórios em tempo real sobre onde os anúncios foram exibidos.

Por fim, a estratégia dos “Sleeping Giants” lembra pressões exercidas por ambientali­stas. É preciso entender melhor os critérios que usam para monitorar páginas de desinforma­ção.

No imbróglio, ironicamen­te, o esforço da Folha em combater conteúdo falso foi sabotado por algoritmos do marketing.

E o leitor? Precisa se responsabi­lizar por aquilo que busca como informação. E entender que notícias não são feitas para confirmar as suas opiniões.

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