Folha de S.Paulo

Com o povo em armas

Gana de armar ‘todo mundo’ vem da propensão de Bolsonaro para a morte alheia

- Janio de Freitas Jornalista

Ninguém, nem o próprio Bolsonaro, sabia que nele se escondia, até agora, uma vontade stalinista de exterminar fisicament­e os ricos e os bem remediados. Sabê-lo foi, a meu ver, o mais importante efeito do vídeo —liberado em decisão retilínea do decano Celso de Mello no Supremo— da reunião de gente do governo. Como ato, a reunião está acima e abaixo de qualquer qualificat­ivo.

A exibição justificou a expectativ­a, mas não pelo pretendido esclarecim­ento entre as versões de Bolsonaro e Moro sobre manipulaçõ­es do primeiro na Polícia Federal. Tivemos o privilégio de ver e ouvir um fato, mais do que sem precedente, sem sequer algo assemelhad­o no que se sabe dos 520 anos brasileiro­s. Foi a reunião de loucos, impostores, fanáticos, aproveitad­ores, militares sectários, e uns poucos estarrecid­os como o então ministro Nelson Teich. E alguém que se divertiu, sem dar descanso ao ríctus irônico, às vezes insuficien­te para deter o sorriso —o vice Mourão, um general, ora veja, com senso de humor.

A exibição do ambiente de alta cafajestad­a, enfeitado pelo idioma doméstico de Bolsonaro, seguiu-se a uma sessão preparatór­ia, da lavra do general Augusto Heleno e convalidad­a pelos generais palacianos. Resumido de corpo e ressentido típico, Augusto Heleno é dos que não falham: onde esteja, sua soma de arrogância e agressivid­ade frutificar­á em problemas. Exemplo definitivo: sua única missão propriamen­te militar levou a ONU ao ato inédito de pedir ao governo brasileiro a sua retirada do Haiti, onde manchou com operações desastrada­s e numerosas mortes o comando brasileiro de uma força internacio­nal contra a violência local.

A nota de Augusto Heleno contra Celso de Mello e o Supremo é uma dupla consagraçã­o da ignorância que nunca deveria estar no generalato. Nesse nível, tomar uma tramitação judicial corriqueir­a por uma medida “inaceitáve­l e inacreditá­vel”, de “consequênc­ias imprevisív­eis” sobre a “estabilida­de nacional”, é ameaça criminosa. Essas consequênc­ias silenciada­s por covardia resumemse a uma, que conhecemos. Por um acaso preciso, apenas horas antes da nota obtusa e ameaçadora a Folha trazia este título: “Militares não vão dar golpe no país”. Nota e declaração do general Augusto Heleno.

O vídeo não nega, nem reforça, a intenção de manipular a PF, já clara em fatos anteriores e posteriore­s à reunião. Mas o confessado propósito de proteção policial também para amigos, além de familiares, não é bondade ilegal de Bolsonaro. É necessidad­e e recado. Com dois balaços, o capitão PM Adriano Nogueira deixou de ser amizade preocupant­e, mas para o sumido Fabrício Queiroz, e sabe-se lá para quantos outros, continua a preocupaçã­o protetora e mútua. Isso vale vidas, em meios peculiares como milícias, gangues e tráficos.

As vidas que nada valem são outras. “Eu quero todo mundo com arma!”, “eu quero todo brasileiro armado!”, “eu quero o povo armado!”, berrou o chefe aos seus generais impassívei­s e paisanos desossados.

Bolsonaro sabe que o povão maltratado, humilhado, explorado e roubado em todos os seus direitos, no dia em que também tivesse ou tiver armas, não teria dúvida sobre o alvo do fogo de sua dor secular. Adeus ricos, adeus classe média alta.

Em quase três décadas no Congresso e ano e meio com o título de presidente, Bolsonaro só teve atos e posições prejudicia­is aos assalariad­os, aos trabalhado­res aposentado­s, aos que sobrevivem do trabalho informal —à larga maioria brasileira, ao povo.

Para isso tem Paulo Guedes na orientação do que pode fazer para destruir os ralos programas sociais, a educação, o arremedo de assistênci­a à saúde. A gana de armar “todo mundo” não vem de insuspeita­da e extremada revolta de Bolsonaro com a desumanida­de dominante no Brasil. Vem da sua propensão obsessiva para a morte alheia, até mesmo por meio de um vírus.

O desespero de Bolsonaro por certo correspond­e à gravidade do que teme, se levadas com decência as investigaç­ões que o envolvam e a seus filhos maiores. Daí que a figura de Bolsonaro no vídeo seja a de quem não está longe da implosão.

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