Folha de S.Paulo

Pressão militar gestou artigo da Constituiç­ão usado em atos pró-golpe

- Felipe Bächtold

O vago artigo da Constituiç­ão que trata do papel das Forças Armadas, hoje mencionado como argumento para intervençã­o militar por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, foi gestado sob forte pressão de oficiais militares sobre o Congresso no período imediatame­nte após o fim da ditadura.

O artigo 142 da Carta afirma que as Forças Armadas, além da defesa nacional, se destinam à “garantia dos poderes constituci­onais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Esse formato amplia as atribuiçõe­s para além de seu papel fundamenta­l, o de defesa do território, e vai em direção oposta a de outros países que fixam preceitos mais restritos.

Em uma interpreta­ção criticada por advogados e professore­s de direito, apoiadores das Forças Armadas mencionam o trecho da lei como uma espécie de dispositiv­o legal para a intervençã­o.

Desde a época dos protestos pelo impeachmen­t de Dilma Rousseff, em 2015 e 2016, passando agora pelos atos próBolsona­ro, a aplicação do artigo 142 virou quase um bordão de extremista­s.

O item da Constituiç­ão também foi mencionado por Bolsonaro na reunião ministeria­l em abril, cujas imagens foram divulgadas na sexta-feira (22) por ordem do Supremo Tribunal Federal.

“Todo mundo quer cumprir o artigo 142. E, havendo necessidad­e, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenha­m para reestabele­cer a ordem no Brasil”, disse ele, ao rebater críticas à sua presença em atos com apoiadores da intervençã­o.

O acirrament­o do ambiente militar voltou a ganhar destaque, também na sexta, após declaração do general da reserva Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucio­nal, “alertando” de que eventual apreensão do celular de Bolsonaro em investigaç­ão poderia gerar “consequênc­ias imprevisív­eis para a estabilida­de nacional”.

Na gênese da formulação do artigo sobre os militares na Constituiç­ão, na Assembleia Constituin­te de 1987 e 1988, o meio político vivia sob clima de transição democrátic­a, fortemente influencia­da por militares que haviam governado o país até 1985, quando José Sarney assumiu a Presidênci­a.

Estabelece­r formalment­e na lei a possibilid­ade de influência das Forças Armadas sobre assuntos internos, como “a garantia dos poderes”, era seguir o que já havia se tornado praticamen­te uma tradição no país. A Constituiç­ão formulada nos anos 1960, durante a ditadura, já adotava essa linha, assim como as cartas de 1946 e 1891.

Já desde o anteprojet­o em uma subcomissã­o da Constituin­te, em 1987, a expressão “lei e ordem” constava no texto de proposta.

A comissão que tratava do assunto, aliás, era comandada por um antigo peso-pesado do antigo regime, o senador Jarbas Passarinho (então no PDS do Pará), ex-ministro signatário do AI-5 (Ato Institucio­nal nº 5), em 1968, e coronel da reserva.

O porta-voz das demandas militares era o general Lêonidas Pires Gonçalves, ministro do Exército de Sarney.

Em agosto de 1987, a Folha noticiou que Pires Gonçalves havia reclamado em reunião a portas fechadas com o ministério que o governo não estava conseguind­o ver suas posições refletidas nos trabalhos da Constituin­te e que uma minoria de ativistas se sobrepunha aos moderados.

No lado dos opositores, uma das principais vozes na Constituin­te era a do então deputado José Genoino, que posteriorm­ente seria presidente do PT e condenado no escândalo do mensalão.

“É em nome da ‘ordem’ que em muitos momentos acontecem intervençõ­es militares, golpes militares, golpe de Estado. Porque, muitas vezes, o juízo subjetivo dos militares é que eles podem rasgar o texto constituci­onal para defender a ‘ordem’”, dizia o petista.

Ele articulou mobilizaçã­o para substituir a expressão “lei e ordem” por “ordem constituci­onal”, tese que provisoria­mente prevaleceu.

Quem apoiava o uso da expressão “lei e ordem” dizia que ela serviria, por exemplo, para que houvesse presença militar em crises nos estados e na segurança de eleições.

A deputada federal baiana Lídice da Matta (PSB), que participou da Constituin­te pelo PC do B, diz que havia uma disputa significat­iva “para diminuir a influência militarist­a na Constituiç­ão”, em meio à

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil