Uma reunião patética
Ler a conversa dos ministros chegar a ser um exercício pedagógico
tensão política do período.
“As assessorias parlamentares de cada ministério militar tinham uma atuação grande. Ficavam lá em todas as votações, presentes. O acompanhamento também era uma forma de pressão”, lembra.
Entre idas e vindas, foi adotado um paliativo no texto: a atuação militar na manutenção da ordem precisaria partir do chamado de um dos três Poderes, mecanismo que não existia até então.
Líder do PMDB no Senado, Fernando Henrique Cardoso celebrou a iniciativa como uma inovação que romperia com a trajetória das Forças Armadas como instituição de “papel moderador” no país.
A votação final dessa parte da Constituição foi marcada para o fim de agosto de 1988.
Na véspera, o ministro do Exército veio a público declarar que as Forças Armadas precisavam atuar em eventuais agressões estrangeiras e, salientou, no “jugo das paixões internas”. “[Deve-se] dizer não às cantilenas personalísticas, não às pregações divisionistas.”
No mesmo dia, Sarney deu declarações de aceno ao meio militar, chamando-o de defensor da ordem nacional, justamente a expressão questionada.
Genoino dizia que o trecho dava “pretexto jurídico” para um golpe e criticava o lobby militar. Por fim, apresentou emenda para suprimir o trecho sobre “ordem”.
No plenário, apenas partidos mais à esquerda, como PT, PC do B e PDT votaram pela emenda de Genoino, e o trecho sobre as Forças Armadas permaneceu como negociado com militares. A Constituição foi enfim promulgada em outubro de 1988.
Jarbas Passarinho, que morreu em 2016, declararia anos depois que o debate sobre as atribuições militares havia sido imenso. “Especialmente o grupo da esquerda não aceita que o papel das Forças Armadas esteja ainda, também, relacionado com a defesa da ordem interna.”
Sarney, em 2018, afirmou que a discussão era muito sensível porque a “estabilidade no setor militar” no período pós-ditadura dependia dela.
O artigo 142 acabaria embasando lei complementar na década de 1990 que regulamenta operações de garantia da lei e da ordem, adotadas, por exemplo, quando o Exército é chamado a atuar nos estados em meio a motins de policiais ou crises na segurança.
Nas últimas semanas, após atos pedindo intervenção militar, o Ministério da Defesa divulgou notas reafirmando seus compromissos com a Constituição, mas sem condenar as manifestações antidemocráticas. Algumas delas tiveram a presença de Bolsonaro.
Para o professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos Fico, que pesquisa a ditadura e as Forças Armadas, a formulação expressa na Constituição era “totalmente não negociável” para os militares na época.
“Em outros países, só em situações muito excepcionais, dramáticas, como catástrofes, há o eventual recurso a militares para auxiliar forças de segurança, por iniciativas humanitárias. Aqui no Brasil, virou uma coisa corriqueira, banal”, diz o docente.
“O artigo do jeito que está, em sua conjuntura histórica em que se insere, passou a ser interpretado dessa maneira autoritária. É muito negativo que não se tenha superado essa fragilidade toda”, acrescenta.
A leitura da transcrição da patética reunião do ministério de Jair Bolsonaro exige algum tempo, mas chega a ser um exercício pedagógico, sobretudo num tempo de horas vagas.
Descontem-se os palavrões (37). Esqueçam-se as tolices (um dos maganos dizendo que o pico da epidemia parecia ter passado). Deixem-se de lado os delírios presidenciais. Sobra o quê? O ministro da Economia, Paulo Guedes, dizendo que leu o economista inglês John Maynard Keynes no original, insistindo nas suas “reformas estruturantes” e colocando duas propostas na mesa.
A primeira foi criativa, caso inédito de colocação do maoísmo a serviço dos cânones da Universidade de Chicago. Ele propôs uma mobilização de jovens para que se formassem como aprendizes. Quantos? “Duzentos mil, 300 mil.”
Nas suas palavras: “O cara de manhã faz calistenia, canta o hino, bate continência”, ajuda a abrir estradas e “aprende a ser cidadão”. O doutor lembrou que a “Alemanha fez isso na reconstrução”. Em 1945, a Alemanha estava destruída e faminta, mas deixa pra lá.
Afora a ingenuidade dessa proposta de militarização do andar de baixo, Guedes expôs outra avenida para o progresso e novamente inspirou-se na Ásia. Nas suas palavras: “O problema do jogo lá... nos recursos integrados [provavelmente ele disse “resorts”] Tem problema nenhum. São bilionários, são milionários. Executivo do mundo inteiro. O cara vem, é... fazem convenções...
Olha, a... o... o turismo saiu de cinco milhões em Singapura pra 30 milhões por ano. (...) Macau recebe 26 milhões hoje na... na China. Só por causa desse negócio. É um centro de negócios. É só maior de idade. O cara entra, deixa grana lá que ele ganhou anteontem —ele deixa aquilo lá, bebe, sai feliz da vida. Aquilo ali num... atrapalha ninguém. Aquilo não atrapalha ninguém. Deixa cada um se foder. (...) O presidente fala em liberdade. Deixa cada um se foder do jeito que quiser.
Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa o cara se foder, pô! Não tem... lá não entra nenhum, lá não entra nenhum brasileirinho.”
No meio de uma epidemia e de uma recessão, o ministro da Economia oferece a legalização da jogatina em resorts turísticos. Esse é um velho sonho de Bolsonaro, desde sua conversão à ideia pelo magnata americano Sheldon Adelson, dono de resorts em Las Vegas, Singapura e Macau. De fato, nos cassinos de Adelson,
“brasileirinho” não entra.
Guedes conhece o Rio de Janeiro. Ele ganha um mês de férias em Macau se realmente acredita que alguém operará um cassino por lá sem que o crime organizado (e a milícia) entrem na operação. Sem cassinos, três governadores do estado foram para a cadeia e um continua lá. (Na China, o hierarca que ocupou cargos equivalentes à presidência da Petrobras e ao Gabinete de Segurança Institucional está trancado.)
O aspecto patético da reunião presidida por Bolsonaro é que ela não leva a lugar nenhum. E não leva porque o presidente não tem a menor ideia do que fazer, salvo sair por aí arrumando brigas.