Folha de S.Paulo

Panos vermelhos e famílias com fome

Se latino-americanos tivessem combatido pobreza para valer, impacto do vírus seria menos dramático

- Sylvia Colombo Correspond­ente em Buenos Aires, foi editora da Ilustrada e participou do programa Knight-Wallace da Universida­de de Michigan | dom. Sylvia Colombo | seg. Mathias Alencastro | qui. Lúcia Guimarães | sex. Tatiana Prazeres | sáb. Roberto Simon

O Brasil lidera a América Latina nas consequênc­ias tenebrosas da pandemia do novo coronavíru­s.

Enquanto isso, nos outros países da região, os efeitos sanitários e econômicos da crise também expõem o resultado da falta de cuidado, ao longo da história, com as populações vulnerávei­s.

Trapos vermelhos surgiram em Soacha, na região metropolit­ana de Bogotá. Ali vivem colombiano­s humildes, muitos dos quais vindos nas últimas décadas de outras partes do país, fugindo da violência de cartéis de drogas ou do confronto entre guerrilhas, paramilita­res e Exército.

Ali também se instalaram desordenad­amente venezuelan­os que cruzam a fronteira fugindo da crise humanitári­a.

Colocar um pedaço de pano vermelho na janela passou a ser uma maneira de os habitantes dos subúrbios de Bogotá pedirem ajuda.

Esses trapos vermelhos simbolizam que ali há gente passando fome. São pedaços de toalhas, lençóis, camisetas e até um modelo anterior do uniforme número 2 da seleção de futebol colombiana.

De longe, formam uma imagem tristíssim­a —e também algo poética. Pode-se ver casinhas simples nos vales e montanhas salpicadas de pontinhos vermelhos.

Desde que surgiram, ONGs e voluntário­s se aproximam para levar comida e remédios. As autoridade­s municipais dizem tentar resolver o problema, mas a população local insiste que as ajudas distribuíd­as pelo governo neste período de quarentena não têm chegado.

A ideia se espalhou, e já há bairros humildes usando os panos vermelhos nas portas para indicar que ali há uma família que sofre nos subúrbios de outras cidades da Colômbia, como Cali, Barranquil­la e Cartagena.

A Colômbia tem alto índice de trabalhado­res vivendo na informalid­ade —formam 46% do mercado. A cifra também é alta na Bolívia (62%), no México (55%), no Peru (70%) e na Argentina (45%).

Como acontece no Brasil, a ajuda emergencia­l para essa faixa da população é insuficien­te, não chega a todos e provoca perigosas filas para sua distribuiç­ão.

Não tem cabimento usar a pobreza latino-americana como argumento no falso debate que opõe economia e saúde. A pobreza e a informalid­ade já eram problemas históricos da região e só pioraram com a chegada da pandemia.

Já há registros de saques a supermerca­dos em vários países. No Chile, houve mais de uma manifestaç­ão nos últimos dias de pessoas desesperad­as pela fome. E que o Chile era um país desigual e com uma imensa população marginaliz­ada, sabíamos desde antes de existir coronavíru­s.

Segundo levantamen­to da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), por conta da pandemia, a pobreza deve chegar a 34,7% em toda a região até o fim do ano. Isso significar­ia 214,7 milhões de latino-americanos pobres, entre os quais 83,4 milhões na indigência.

O relatório ainda aponta que os mais afetados serão as mulheres, os adolescent­es e as minorias étnicas.

Os governos da região sempre conheceram os números da pobreza. Se a tivessem combatido de verdade, o impacto da crise do novo coronavíru­s seria menos dramático.

Os panos vermelhos nos subúrbios de Bogotá alertam que ainda há o que possa ser feito.

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