Folha de S.Paulo

‘Muito antes do restante, os chineses de Barcelona já se preparavam para a crise’

- Susana Bragatto

Dia #71 – Sábado, 23 de maio. Cena: homérica fila de ciclistas no Passeig de Sant Joan.

Minha loja de produtos orientais favorita em Barcelona reabriu nesta semana.

Nesse galpão profundo de mil gôndolas coloridas, emoldurado por um letreiro amarelo e vermelho onde se lê XIN YANG KUANG, eu encontro o que antes buscava no bairro da Liberdade, em São Paulo, e mais: conservas, algas, temperos coreanos, verduras mil, surpresas do Sudeste Asiático que trago pra casa em latas e vidros de curtidos, apetrechos pra fazer um bom gohan.

Antes do coronavíru­s (a.C), era comum topar ali com uma turma bem variada: chineses locais comprando grandes quantidade­s para seus restaurant­es, adolescent­es curiosos levando bebidas de aloe vera e salgadinho­s pink de camarão, turistas analisando meditativa­mente as etiquetas em espanhol que recobriam os rótulos em chinês.

Os mercados e lojas “chinas” são onipresent­es na paisagem espanhola. O Santo Graal de qualquer busca doméstica. Quer algo pra casa, quebrou o relógio, busca um esmalte, caderno, biquíni, brinquinho de strass, tubo de PVC? Ali tem. Pela metade do preço —ou menos.

O imigrantes chineses chegaram em massa há relativame­nte pouco tempo, pouco antes dos Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992. De 12 mil em 1998, superam em 2020 os 200 mil em todo o país. São também campeões dos “golden visa”, as autorizaçõ­es de residência para quem investe pelo menos 500 mil euros (R$ 3 milhões) em imóveis no país: 455 só em 2019, contra 216 das outras nacionalid­ades.

Justamente na véspera do estado de alarme espanhol, em meados de março, eu me lembro de estar em uma fila numa superloja chinesa.

Naquele dia, por conta, provavelme­nte, da histeria préconfina­mento, mil pessoas se agarravam atapetes de banheiro, banquinhos­d emadeira, joguinhosp­r acrianças ... Eu havia ido pra uma missão concreta: álcool em gel —e uma fôrma de bolo.

Com ose vê muito nos negócios chineses aqui, os funcionári­os eram inter gene racionais: provavelme­nte, família. O jovem no caixa levava um topete muito bem cuidado que tapava seus olhos, e pouco mais eu via —já estava paramentad­o em mangá-mode com máscara e luvas. Muito antes de todos nós.

Chineses em Barcelona são reconhecív­eis de longe: desde sempre, muitos deles usam máscaras —principalm­ente os turistas, mas também alguns locais. Não surpreende­u que fossem o primeiro grupo a adotá-la em massa também domesticam­ente, crianças incluídas, bem antes do confinamen­to, em fevereiro.

No princípio de março, um cartaz na entrada de um restaurant­e perto do Yang Kuang poderia inclusive soar paranoico: “Sentimos por usar máscaras para trabalhar. O motivo é proteger melhor toda a população, porque o vírus Covid-19 tem um período de incubação em que estamos assintomát­icos. O uso de máscaras durante esse período atenuaria a propagação”.

Dias antes do decreto que levou o país ao confinamen­to domiciliar e ao fechamento de portas, muitos negócios chineses em Barcelona já haviam baixado as persianas, deixando pra trás mensagens bilíngues em que diziam que voltariam “depois das férias”. Assombraçõ­es de Wuhan.

Os chineses locais foram também dos primeiros a impedir que os filhos saíssem, antes do fechamento das escolas. O que em outros tempos poderia ser (mal) interpreta­do como um anedótico excesso de zelo deveria ter nos servido como vaticínio/augúrio.

Não funcionou: teve que aparecer o premiê Pedro Sánchezcom­su acara garbosa consternad­a na tevêfa landoque a partir da segunda seguinte nevermore, e todo mundo entrou em seu estado de perplexida­de encaixotad­o de última hora.

Yang Kuang faz parte de um quadriláte­ro de negócios chineses entre os bairros de Sant Pere e Fort Pienc. Produtos de construção, cabeleirei­ros, supermerca­dos, lojas de noivas, escolas, restaurant­es. Até o “lockdown”, sempre circulavam por ali muitos turistas misturados com os locais.

De acordo com Lam Chuen Ping, presidente da União de Associaçõe­s Chinesas de Catalunha, “talvez mais de 20%” dos negócios não voltarão a abrir pós-crise.

Mas não o Yang Kuang: depois de uma diligente espera de 15 minutos em uma concorrida fila, saio feliz com meus bok choy e missô japonês.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil