Folha de S.Paulo

Bolsonaro ignora economia para tratar de cocô petrificad­o e taxímetro

Guedes propõe vender BB, legalizar cassinos, formar aprendizes militares e detona investimen­to público

- Vinicius Torres Freire

Dois ministros discutiram de modo agressivo um plano de reconstruç­ão econômica em parte baseado em obras públicas na reunião de 22 de abril, tornada pública agora pelo Supremo.

O presidente Jair Bolsonaro nada disse do debate entre Paulo Guedes (Economia) e Rogério Marinho (Desenvolvi­mento Regional) acerca do futuro pós-epidemia.

Em matéria econômica, quase se limitou a adiar para 2023 (em uma eventual reeleição) a ideia de privatizar o Banco do Brasil, proposta por Guedes, e a dizer que a crise decorrente do fechamento do comércio era uma “trozoba” que empurraria­m “para cima da gente”.

No mais, em assuntos correlatos, tratou de algumas de suas obsessões, como mudanças em taxímetros, em tacógrafos e no “chip na bomba de combustíve­l” (“putaria!”) e na tomada de três pinos.

Mencionou ainda problemas regulatóri­os, por assim dizer, quando afirmou que “cocô petrificad­o de índio” (problemas de patrimônio histórico) travava uma obra do empresário Luciano Hang (dono da Havan). Ou quando elogiou medida que facilitou a vida de milhares de pessoas no Vale do Ribeira, região paulista em que passou infância e adolescênc­ia.

No debate da política da reconstruç­ão, Marinho criticou “dogmas” (as posições de Guedes) e disse que o aumento da despesa federal com a epidemia seria grande, uns R$ 600 bilhões, a fim de evitar problemas sociais e quebra de empresas. Assim, seria adequado empregar de 5% a 10% desse valor em obras de infraestru­tura e promoção do emprego durante uma recuperaçã­o que “vai ser muito lenta”.

No encontro, Guedes e o ministro Marcelo Antônio (Turismo) defenderam a legalizaçã­o dos cassinos, como incentivo ao turismo. A fim de convencer a ministra Damares Alves (Direitos Humanos), que se opõe ao jogo, Guedes disse: “O cara entra, deixa grana lá que ele ganhou anteontem..., bebe, sai feliz da vida. Aquilo não atrapalha ninguém. Deixa cada um se f..., ô, Damares”.

Guedes disse ainda que o Brasil poderia se beneficiar de mais investimen­tos americanos caso assinasse o “General Purchase Agreement”. Talvez se referisse ao “General Procuremen­t Agreement” (Acordo de Compras Governamen­tais), acordo patrocinad­o pela OMC, que pode abrir as concorrênc­ias públicas a maior participaç­ão de empresas estrangeir­as.

O ministro da Economia pareceu dizer que tenta também organizar com o Ministério da Defesa a contrataçã­o de “um milhão de aprendizes” pelos “quartéis brasileiro­s”.

Os jovens receberiam cerca de R$ 200 por alguns meses, teriam aulas de “organizaçã­o social e política do Brasil”, disciplina escolar dos tempos da ditadura, fariam exercícios físicos e talvez trabalhass­em em obras públicas.

A reunião ministeria­l era destinada à apresentaç­ão do plano Pró-Brasil, que seria anunciado ao público naquela mesma quarta-feira, 22 de abril, pelo ministro Braga Netto (Casa Civil). Fazia dias, o plano era vazado e motivo de atritos entre Guedes e Rogério Marinho.

Braga Netto não apresentou mais detalhes do plano do que na entrevista coletiva. A ideia foi atacada duramente por Guedes.

O ministro da Economia disse, para começar, que chamar a proposta de Plano Marshall revelava “despreparo enorme” (o plano foi um programa de auxílio à Europa patrocinad­o pelos EUA, após a Segunda Guerra mundial). De passagem disse que a “China deveria financiar um Plano Marshall para ajudar todo mundo que foi atingido”.

Enfatizou sua posição de que a retomada do cresciment­o deve ser conduzida por “investimen­tos privados, pelo turismo, pela abertura da economia, pelas reformas”.

Diz que o plano de obras públicas tinha a “digital” de Marinho e insinuou que era eleitoreir­o, para este ano, quando o adequado seria pensar na reeleição de Bolsonaro, seguindo o plano de longo prazo de seu ministério. Diz que o “Pró-Brasil” foi vazado para “a imprensa” de modo a passar a impressão de que seu ministério “estava fora”.

Marinho defende-se em seguida. Insinua que as acusações de Guedes são “teoria da conspiraçã­o”. Diz que “não existem verdades absolutas”, pois em um uma crise inédita seriam necessário­s “remédios extraordin­ários, de forma circunstan­cial”.

Governos liberais, diz, estariam “preparando programas de reconstruç­ão”: “muda o papel do Estado”. Lembra o caso das grandes despesas públicas com “capital humano e infraestru­tura” da Alemanha na reunificaç­ão, nos anos 1990, a fim de reduzir a desigualda­de entre as partes Ocidental e Oriental do país.

Mais tarde, quase no final do encontro, Guedes volta ao ataque por esse ponto. Diz que conhece o caso dessa e de outras reconstruç­ões por ter lido oito livros sobre cada assunto; que leu Keynes três vezes no original antes de fazer seu doutorado nos EUA.

Guedes respondeu que não havia dogma. Que o governo seguia na “direção norte”, com “reformas estruturan­tes” e “de repente”, depois da epidemia, foi “para o sul”, fazendo programas de auxílio antes de alemães e de ingleses, “só atrás um pouquinho” dos Estados Unidos.

No mais, era o caso de manter as contas públicas arrumadas, com ajuda, por exemplo, da reforma da Previdênci­a, da queda dos juros e da contenção do salário dos servidores. “Não tem jeito de fazer um impeachmen­t se a gente tiver com as contas arrumadas, tudo em dia. Acabou! Não tem jeito.”

As exportaçõe­s iriam bem, mas é preciso ser cuidadoso com a China. “A China é aquele cara que você sabe que tem que aguentar, porque, ‘procês’ terem uma ideia, para cada um dólar que o Brasil exporta ‘pros’ Estados Unidos, exporta três pra China”, disse o ministro.

O ministro Tarcísio de Freitas (Infraestru­tura) diz que os investimen­tos privados virão, mas as obras apenas começariam em 2023 e 2024.

De imediato, seria necessário algum dinheiro extra para seu ministério, que teria capacidade operaciona­l de investir no máximo R$ 14 bilhões por ano. Logo, com orçamento atual de R$ 8 bilhões, precisaria apenas de um complement­o de até R$ 4 bilhões em obras que teriam efeito imediato para “gerar emprego”.

Ao encerrar sua participaç­ão, Freitas diz: “Tivemos aí dois caras aí na história recente que pegaram terra arrasada e entraram pra história. Um foi o Roosevelt, o outro foi o Churchill. O terceiro vai ser o Bolsonaro”.

Roberto Campos, presidente do Banco Central, disse que resumiria sua intervençã­o a notar “três pontos importante­s”:

1) o setor privado no mundo inteiro estaria com medo de “tomar risco”: “não vai ter como ter uma saída rápida sem que o governo não entre, de alguma forma, tomando risco”;

2) análise de despesas extras do governo pelo critério de maior efeito na preservaçã­o de emprego e boas empresas;

3) boa governança de projetos de infraestru­tura, colocando “agentes internacio­nais que fazem governança mundial”.

“Tivemos aí dois caras aí na história recente que pegaram terra arrasada e entraram pra história. Um foi o Roosevelt, o outro foi o Churchill. O terceiro vai ser o Bolsonaro Tarcísio de Freitas ministro da Infraestru­tura

“Não tem jeito de fazer um impeachmen­t se a gente tiver com as contas arrumadas, tudo em dia. Acabou! Não tem jeito

É um caso pronto e a gente não tá dando esse passo. Senhor já notou que o BNDES e a Caixa, que são nossos, públicos, a gente faz o que a gente quer. Banco do Brasil a gente não consegue fazer nada e tem um liberal lá. Então tem que vender essa porra logo

A China é aquele cara que você sabe que tem que aguentar... para cada um dólar que o Brasil exporta ‘pros’ Estados Unidos, exporta três pra China

“Não vai ter como ter uma saída rápida sem que o governo não entre, de alguma forma, tomando risco Roberto Campos Neto presidente do Banco Central

 ?? Divulgação Presidênci­a ?? Reunião ministeria­l de 22 de abril; troca de farpas e propostas polêmicas marcam discussão econômica
Divulgação Presidênci­a Reunião ministeria­l de 22 de abril; troca de farpas e propostas polêmicas marcam discussão econômica

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil