Folha de S.Paulo

Renda básica

Mesmo os mais céticos, como eu, devemos olhar com cuidado a proposta de Suplicy

- Pesquisado­r do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP Samuel Pessôa

O auxílio emergencia­l de R$ 600 reviveu a proposta do ex-senador Eduardo Suplicy da renda básica de cidadania.

Sempre achei um programa muito caro. Apesar de gostar da renda básica, nunca a tinha levado a sério.

A partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2017, a PnadC, conduzida trimestral­mente pelo IBGE, os professore­s do Departamen­to de Economia da Universida­de Federal de Pernambuco Rozane Siqueira e José Ricardo Nogueira simularam os impactos sobre o Orçamento, a pobreza e a desigualda­de de um programa de renda básica de cidadania.

Os autores supõem que todas as rendas do trabalho reportadas na PnadC sejam tributadas pela regra do IRPF. Após considerar­em as rendas do trabalho, as transferên­cias do setor público, as previdenci­árias e outras, além do Imposto de Renda e as contribuiç­ões para a Previdênci­a, observam que a renda disponível das famílias foi de R$ 3 trilhões.

Documentam que uma alíquota de Imposto de Renda de 35,7% sob todas as rendas declaradas na PnadC, inclusive informal, garante renda básica de cidadania de R$ 406 a todos os cidadãos brasileiro­s. Todos os benefícios permanente­s, previdenci­ários e assistenci­ais pagos pelo setor público são mantidos, mas reduzidos do valor da renda básica. Sobre a renda básica não incide IR.

O imposto linear de 35,7% sobre todas as rendas do trabalho e a subtração do valor da renda básica das transferên­cias de caráter permanente do setor público às famílias gerariam o R$ 1 trilhão necessário para financiar o programa.

O imposto linear substituir­ia o atual IR e as contribuiç­ões previdenci­árias do trabalhado­r (mas não a patronal). Não haveria as deduções por saúde e educação privada.

O mais impression­ante é o resultado sobre a pobreza e a desigualda­de. A renda de R$ 406 por pessoa foi calibrada para ser igual à linha de pobreza para países de renda média alta do Banco Mundial, de US$ 5,5 por dia por pessoa. Vale lembrar que os R$ 406 em 2017 representa­vam 43% do salário mínimo e 51% da renda mediana per capita do país, segundo a mesma PnadC de 2017.

Por construção, elimina-se a pobreza. Em 2017, 23% das pessoas e 40% das crianças (menores de 18 anos) viviam com menos do que a renda básica.

O impacto sobre a desigualda­de seria muito forte: o coeficient­e de Gini cairia do atual 0,506 para 0,377. Nossa desigualda­de passaria a ser a mesma da Austrália em 2014 (dados da OCDE). A queda da desigualda­de de 0,129 (subtração de 0,377 de 0,506) seria quase o dobro da queda da desigualda­de observada entre 2002 e 2014.

O leitor pode se perguntar: não seria possível reduzir a alíquota de imposto se incluíssem­os impostos sobre lucro? O Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, bem como os impostos indiretos, compõe a receita do Estado brasileiro e é empregado para financiar outros gastos públicos, entre eles a Previdênci­a e as pensões dos servidores públicos e dos trabalhado­res do setor privado, no que essas excederem a renda básica.

Há alguma possibilid­ade de elevar a base de financiame­nto da renda básica de cidadania tributando melhor rendas do trabalho escondidas na forma de lucros e que não são bem captadas pela PnadC, como os regimes tributário­s especiais, lucro presumido e Simples.

E há algum espaço para elevar a tributação sobre as empresas do regime de lucro real, dado que a alíquota de 34% é um pouco menor que os 35,7%, e a figura do juro sobre o capital próprio permite alguma redução no IRPJ.

Mesmo para os mais céticos, como é meu caso, devemos olhar com cuidado a proposta de Suplicy.

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