Folha de S.Paulo

Com retorno de migrantes, Covid-19 avança no Nordeste

Moradores de grandes centros driblam barreiras para voltar a cidades de origem

- João Pedro Pitombo e João Valadares

Na madrugada do dia 15 de abril, um ônibus clandestin­o com 46 passageiro­s, incluindo crianças, deixou o bairro do Brás, na região central de São Paulo, em direção a cidades do interior dos estados de Pernambuco e da Paraíba.

Em sua maioria, os passageiro­s eram pessoas que, depois de construir a vida longe de sua cidade natal, perderam o emprego ou outras fontes de renda nos últimos meses.

Cada um deles desembolso­u R$ 260 para fazer o caminho de volta, em uma viagem de dois dias —parte dela feita em estradas de barro para escapar das barreiras sanitárias que foram instaladas nas vias principais.

A crise provocada pela pandemia do novo coronavíru­s impulsiono­u o movimento de migração de retorno de moradores de grandes centros do Sudeste, especialme­nte de São Paulo, para cidades do interior do Nordeste.

O resultado desse movimento é um avanço dos casos da Covid-19 em pequenas cidades nordestina­s.

Apenas na Bahia, pelo menos 20 cidades registrara­m o primeiro caso da doença após a chegada de pessoas do estado de São Paulo para a casa de suas famílias.

Foi assim em cidades como Jussiape, Caetanos, Piritiba, Jaborandi, São Domingos e Santa Maria da Vitória, todas do interior baiano. O mesmo em outros estados da região, como na cidade de Padre Marcos (PI).

“Tem muita gente voltando para suas cidades de origem, o que fez as prefeitura­s redobrarem o nível de atenção. São pessoas que podem já vir com a doença ou podem ter se contaminad­o no caminho”, afirma o prefeito de Bom Jesus da Lapa e presidente da União dos Municípios da Bahia, Eures Ribeiro (PSD).

A suspensão do transporte de passageiro­s interestad­ual e intermunic­ipal foi uma das medidas adotadas pelos governos estaduais da região para reduzir o fluxo entre as cidades e tentar conter a disseminaç­ão da doença. Na Bahia, por exemplo, 196 das 417 cidades estão com o transporte suspenso.

Sem a opção do transporte de passageiro­s regular, muitas pessoas têm arriscado viajar em meios de transporte clandestin­os —como ônibus, vans, carros de passeio e até caminhões.

No interior na Bahia, equipes das barreiras sanitárias encontrara­m famílias inteiras amontoadas dentro de caminhões-baú.

Na cidade de Serrinha (a 183 km de Salvador), um caminhão apreendido levava, escondidas, 32 pessoas que haviam saído do Paraná, a mais de 2.000 km de distância dali, e enfrentari­am no total mais de 3.000 km até seu destino final, no estado da Paraíba.

Um caso semelhante foi registrado na cidade de Irecê (480 km de Salvador), em que funcionári­os da barreira sanitária encontrara­m famílias que viajavam amontoadas dentro de um caminhão com parca ventilação.

De acordo com dados da ANTT (Agência Nacional de Transporte­s Terrestres), pelo menos 300 ônibus clandestin­os foram autuados nos últimos meses em rotas entre estados do Sudeste e do Nordeste nas rodovias federais. A estimativa é que esses ônibus tenham transporta­do cerca de 4.000 pessoas.

Em casos assim, informa a ANTT, os passageiro­s são encaminhad­os para veículos regulares para completar as viagens, com as custas pagas pela empresa flagrada trabalhand­o irregularm­ente.

A Folha ouviu um motorista que costuma fazer a rota entre São Paulo e cidades como Afogados da Ingazeira, São José do Egito e Tabira, em Pernambuco, e Taperoá, no interior da Paraíba.

O motorista, que preferiu não se identifica­r, conta que a procura pelo transporte clandestin­o aumentou bastante nos últimos meses. Ele estima ter transporta­do mais de 500 pessoas apenas nos últimos 45 dias, sempre percorrend­o rotas alternativ­as para evitar passar pelas barreiras sanitárias ou por bloqueios da polícia.

Antes das restrições no transporte de passageiro­s interestad­ual, o movimento também havia crescido no transporte regular.

O motorista Genival Galdino, 51, que faz transporte regular de passageiro­s de São Paulo para o interior do Nordeste desde 1991, diz ter feito sua última viagem no final de março.

“Levei 50 pessoas para o sertão de Pernambuco. Gente que precisou fugir daqui de São Paulo porque não tem mais conseguido arrumar o que comer. Estão no meio da rua porque não podem mais pagar aluguel. Peguei um casal que estava passando fome mesmo”, afirma.

Galdino diz considerar ineficazes as medidas de restrição ao transporte de passageiro­s. “Daqui de São Paulo mesmo, sai todo dia ônibus, van, carro particular. Quem controla quando essas pessoas chegam lá no interior? Ninguém. Elas não são nem vistas, saem e chegam de madrugada”, afirma.

É o caso de José Agripino Fernandes, 47, que morava em São Paulo havia 23 anos e voltou para Serra Talhada, no sertão de Pernambuco, há cerca de 20 dias. Em São Paulo, já trabalhou de pedreiro, eletricist­a e, nos últimos dois anos, era ajudante de mecânico numa oficina do bairro da Mooca, na zona leste.

“O dono da oficina disse que não tinha como me pagar. Fiquei sem nada e voltei com uma filha pequena e minha esposa para recomeçar a vida onde nasci.”

Agripino relata que, quando retornou de São Paulo, foi direto para um sítio de seus familiares na zona rural de Serra Talhada.

“Nos últimos dias, eu tive dor de cabeça e um pouquinho de tosse, mas minha mulher e minha filha não tiveram nada. Não sei se peguei essa doença”, diz o trabalhado­r.

A prefeitura de Serra Talhada informou que o fluxo de pessoas provenient­es de São Paulo, nos últimos dias, registrou aumento.

O poder público alega que tem tido dificuldad­e para fazer o mapeamento necessário ao enfrentame­nto da Covid-19 porque muitos desses passageiro­s chegam de maneira clandestin­a.

A preocupaçã­o é a mesma entre outros prefeitura­s da região. Em Xique-Xique, cidade de 46 mil habitantes do norte da Bahia, as barreiras da prefeitura já registrara­m a entrada de mais de 4.000 pessoas na cidade nos últimos dois meses. Mas a administra­ção municipal estima que o número seja ainda maior.

“Para não passar barreiras, muita gente desce nos municípios vizinhos. De lá, eles arranjam um jeito de vir para nossa cidade e para os distritos”, afirma o prefeito Reinaldo Braga Filho (MDB).

Governo federal, governos estaduais e prefeitura­s informaram que têm intensific­ado a fiscalizaç­ão.

A ANTT alerta também para os riscos de contaminaç­ão para os passageiro­s desses meios de transporte­s clandestin­os em meio à pandemia do coronavíru­s, já que estes não costumam cumprir os protocolos sanitários adotados pelas empresas regulares.

Enquanto a crise econômica se aprofunda, quem voltou para a terra de origem em busca de um porto seguro ainda não pensa em retornar aos grandes centros.

O eletricist­a Alexandre Alves de Góis, 46, que morava havia 20 anos no bairro do Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo, agora está reformando uma pequena casa na zona rural do município pernambuca­no de Afogados da Ingazeira.

Góis trabalhava como prestador de serviços em várias obras de construção civil e tinha como principal cliente uma rede de escolas, que está fechada na quarentena. Sem renda, voltou para a terra da família junto com sua mulher. Lidiane Mendes da Silva, 33, está grávida.

O eletricist­a diz não ter planos de voltar para a capital paulista, pelo menos enquanto a pandemia não arrefecer. “Não dá para ficar em São Paulo pagando aluguel e sem dinheiro. Aqui, nós gastamos menos”, diz.

“Para não passar barreiras, muita gente desce nos municípios vizinhos. De lá, eles arranjam um jeito de vir para nossa cidade e para os distritos

Reinaldo Braga Filho (MDB), prefeito de Xique-Xique, cidade de 46 mil habitantes na Bahia

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ANTT / Divulgação Barreiras buscam impedir transporte clandestin­o; retorno de migrantes espalha Covid-19 no Nordeste

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