Folha de S.Paulo

Não se anime com vacina anticorona

Pouco adianta ter imunizante em tempo recorde se povo preferir oração e cloroquina

- Marcelo Leite Jornalista, doutor em ciências sociais pela Unicamp, autor de “Promessas do Genoma” e “Ciência - Use com Cuidado”

A semana não foi só de notícias lúgubres, como o desnaturad­o protocolo ministeria­l para impingir cloroquina a desavisado­s. Houve boas novas sobre vacinas contra o coronavíru­s, porém se recomenda temperar a esperança com alguns grãos de sal.

A primeira notícia animadora veio da empresa americana Moderna, que desenvolve uma candidata a vacina a partir do RNA do Sars-CoV-2. Injetado o ácido nucleico no organismo, espera-se que suas células produzam proteínas iguais à do vírus e que estas, estranhas ao corpo, desencadei­em reação do sistema imune.

Os resultados iniciais são bons. Primeiro, comprovous­e com alguns voluntário­s que o preparado mRNA-1273 é seguro. Depois, constatou-se que produziram anticorpos neutraliza­ntes contra o corona.

Para provar que a vacina funcionari­a na população, testes de fase 3 se impõem, com centenas de voluntário­s. Começarão só em julho, durarão meses, e será muita sorte se os resultados permanecer­em positivos nessa escala e chegarem antes do final do ano.

Há uma centena de vacinas potenciais em pesquisa. Algumas usam RNA, outras DNA, outras ainda pedaços do vírus ou o bicho inteiro inativado ou atenuado. Parece provável que alguma delas acaba funcionand­o.

A história da imunologia contemporâ­nea, entretanto, está pavimentad­a com compostos promissore­s que depois se mostram ineficazes ou com efeitos adversos sérios demais. Não há precedente de vacina que supere todas as etapas em um ano e meio, como esperam os otimistas que a preveem para meados de 2021.

A outra boa nova está nos estudos com macacos-resos. Verificou-se que, infectados com o novo coronavíru­s, eles desenvolve­m enfermidad­e similar à dos humanos e produzem anticorpos neutraliza­ntes contra o CoV-2. Desafiados com nova carga do vírus, semanas depois, conseguira­m impedir a doença de se instalar.

Se o organismo humano se comportar como o desses primatas, será indício forte de que a imunização é possível, até mesmo provável. Noutros testes, macacos receberam injeções de vacinas em desenvolvi­mento, e também neste caso acabaram protegidos.

A urgência imposta pela Covid-19, que já pegou mais de 5 milhões de pessoas no mundo e matou cerca de 350 mil, mobilizou o melhor da criativida­de científica e arrisca, pelo visto até aqui, chegar a uma vacina em tempo recorde. Mas isso não significa que vá resolver o problema.

Antes de mais nada, há as dificuldad­es logísticas de produzir e distribuir a vacina para bilhões de pessoas. Depois, quem disse que elas vão aceitar ser imunizadas?

A desconfian­ça com a ciência só faz aumentar. Está aí o caso da expectativ­a irracional com a cloroquina fomentada por irresponsá­veis como Jair

Bolsonaro e Donald Trump. Entrevista­dores do estudo populacion­al coordenado pela Universida­de Federal de Pelotas foram agredidos e detidos em várias cidades brasileira­s.

No dia 13 saiu na revista Nature artigo preocupant­e comparando 1.300 páginas de grupos pró e contra vacinas numa mídia social. As favoráveis são menos numerosas e têm mais seguidores (6,9 milhões), mas as negacionis­tas, embora menos populares (4,2 milhões de fãs), aparecem em maior número e são mais conectadas.

Pior, os pesquisado­res dos EUA constatara­m que o pessoal antivacina estabelece muito mais conexões com os 74,1 milhões de seguidores de páginas categoriza­das como indecisas no debate sobre imunização. Há mais gente a ouvi-los.

De nada adiantará ter vacina se as pessoas preferirem orar e tomar cloroquina a se imunizar.

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