Folha de S.Paulo

Ainda não entenderam gravidade, diz médica que ficou em dupla quarentena

Ho Yeh Li acompanhou a volta de brasileiro­s que estavam em Wuhan, então epicentro de Covid-19

- HO YEH LI Natália Cancian

O coronavíru­s já deixou a médica infectolog­ista Ho Yeh Li, 47, duas vezes em isolamento completo.

A primeira, em Anápolis (GO), após coordenar, a convite do Ministério da Saúde, a equipe de profission­ais de saúde na primeira operação para trazer brasileiro­s que estavam em Wuhan, na China.

A segunda, em São Paulo, quando descobriu que estava com a doença dias após iniciar o atendiment­o à frente da UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) de infectolog­ia do Hospital das Clínicas da USP.

Em entrevista à Folha ,Ho conta como foi o processo de recuperaçã­o e os desafios na assistênci­a. Em casa, esteve por 16 dias —parte deles na cama por causa de febre. “O fato de eu mesma, que não fiquei internada, ter precisado de tanto tempo para me recuperar só mostra que realmente essa não é uma gripezinha.”

Para ela, as pessoas ainda não entenderam a gravidade da doença. “Estamos toda semana aumentando os leitos de UTI. Mas isso tem limite”, diz ela, que faz um apelo por medidas de prevenção.

“Se não colaborare­m, nós, os profission­ais de saúde, estamos enxugando gelo”, afirmou a médica, que virou personagem da Turma da Mônica em reconhecim­ento pelo trabalho na saúde.

Ho critica a decisão do governo Bolsonaro, que ampliou o uso da cloroquina para casos leves. “Estamos gastando tempo demais sobre isso e colocando a população em risco, enquanto estudos já mostram que não há benefícios e apontam malefícios.”

A sra. foi uma das primeiras médicas a ficar em isolamento por risco do coronavíru­s por causa da missão de Wuhan. O que mudou em como imaginava o cenário naquela época em relação a agora? Naquela

época, ainda tínhamos dúvida de quando e como chegaria ao Brasil. Havia dúvidas sobre o impacto de diferenças climáticas na expansão da doença, ainda mais restrita à China e a pequenas áreas na Ásia.

Quando apareceram casos na Itália, foi quando tivemos a certeza de que chegaria, porque recebemos mais turistas europeus do que da Ásia.

Já achava que poderia pegar a doença?

Já sabíamos que, por estarmos na linha de frente, e sem vacina eficaz, em algum momento poderíamos ser infectados. Por isso tivemos desde o início uma preocupaçã­o gigante em relação à segurança dos profission­ais.

Não imaginei que fosse ficar doente logo no começo. Mas várias pessoas do comitê de crise ficaram doentes e, lá no início, fazíamos reuniões sem máscara [na época, o uso não era obrigatóri­o].

Também ficava entrando e saindo de áreas de assistênci­a, e tinha que colocar e tirar equipament­os de proteção individual o tempo todo.

Como foi descobrir que estava com o coronavíru­s?

Fiquei doente em 2 de abril. Os primeiros sete a oito dias nem senti que estava isolada, porque estava praticamen­te acamada. Tinha febre o tempo todo, dor de cabeça, dor no corpo. Tomava antitérmic­o, e a febre não abaixava e voltava.

Teve um dia em que eu não estava bem, e pelo critério do oxímetro, talvez teria de ser internada. Ali fiquei com receio de complicar.

Fiquei totalmente acamada, dormindo, e quando acordei, tinha centenas de mensagens, e as pessoas estavam quase invadindo a minha casa [ri].

Também tive perda do paladar e de olfato. No segundo dia da doença, fui preparar a comida e não senti cheiro, e a comida não tinha gosto. Só voltou o paladar lá para o 15º dia.

Teve algo que mudou na sua percepção da doença ao ter o diagnóstic­o?

Na UTI, não temos muito oportunida­de de conversar com os pacientes.

A maior parte não consegue falar pela falta de ar. Ficar doente e ter tanta dor de cabeça e dor muscular o tempo todo me fez entender porque a gente tinha tanta dificuldad­e para sedar os pacientes na UTI.

Geralmente a gente sempre dá uma certa dose para o paciente de ventilação mecânica. Para esses [do coronavíru­s], precisamos quase dez vezes mais medicação para conseguir alcançar o mesmo nível.

Levou quantos dias para se recuperar?

Fiquei afastada 16 dias. Voltei empolgada para trabalhar, mas percebi uma mudança. Eu sempre entro no hospital às 7h. É muito comum eu ficar até 19h, 20h, e já fiquei até 0h, mas nunca tão cansada. Depois que voltei, não era nem 17h e já estava esgotada. Não estava totalmente recuperada fisicament­e.

O fato de eu mesma, que não fiquei internada, ter precisado de tanto tempo para me recuperar só me trouxe mais certeza de que essa definitiva­mente não é uma gripezinha qualquer.

Em fevereiro, enquanto muitos ainda tentavam minimizar os impactos, a sra. foi uma das especialis­tas a dizer que não havia sistema de saúde que aguentasse se o coronavíru­s se espalhasse tanto quanto o H1N1.Comovêasit­uaçãohoje?

O Ministério da Saúde começou o preparo em janeiro. Sentimos que os estados que entenderam cedo que a doença chegaria e começaram a ter algum tipo de plano para assistênci­a são os que estão conseguind­o ainda de alguma forma atender os pacientes.

Estados que acharam que a doença não ia chegar estão sofrendoac­onsequênci­a.Aomesmo tempo, vem a preocupaçã­o: a sociedade ainda não entendeu a gravidade da doença.

Estamos toda semana aumentando os leitos de UTI. Mas isso tem limite, e em algum momento ele vai chegar, seja por capacidade de estrutura, seja de recursos humanos.

Não se forma um médico

intensivis­ta de uma hora para outra. Se a população não aderir a medidas de prevenção, em breve os sistemas de saúde vão estar esgotados.

Em uma boa parte das capitais, vemos que os sistemas já tendem a esgotar ou esgotaram. Manaus é um exemplo disso. Fortaleza também.

Quais seriam essas medidas de prevenção?

Ainda vemos pessoas na rua sem máscara. Ainda não entenderam que é uma doença de transmissã­o respiratór­ia e tem de usar. Outros usam luvas, mas acham que estão seguros e coçam o rosto.

O isolamento é outra medida. A China conseguiu controlar a doença com 50 dias de quarentena em Wuhan porque todo mundo aderiu. Já Taiwan, por exemplo, não fez “lockdown”, mas adotou medidas de prevenção e o governo organizou para que tudo funcionass­e de forma organizada.

O problema nosso é que a gente não faz nem uma coisa nem outra. Quem está na rua e tem de adotar medida de prevenção não adota. E quem tem de ficar em casa não fica.

A sra. fala que o sistema deve se esgotar. Em quanto tempo isso deve ocorrer? Estamos já perto de um auge da epidemia?

O Brasil é um país de dimensões continenta­is, e não dá para generaliza­r a previsão. Em São Paulo, por exemplo, é difícil prever quando seria o pico, o que depende do comportame­nto das pessoas.

Mas, se a adesão das pessoas em relação ao distanciam­ento social e a medidas de prevenção continuar abaixo de 50%, em breve vamos esgotar a capacidade. Se as pessoas não colaborare­m, nós, os profission­ais de saúde, estamos enxugando gelo.

Além da sua experiênci­a, a sra. está à frente da UTI de infectolog­ia de um dos maiores hospitais do país. Quais dificuldad­es enfrenta?

A primeira é a falta de dados científico­s para ter certeza de que estamos fazendo o melhor. Mas talvez o que esteja mais atrapalhan­do é a rede social. Há várias notícias divulgando medidas de tratamento sem comprovaçã­o científica, mas que caem na boca da população e os médicos sofrem pressão.

Toda vez que contratamo­s um novo médico, preciso explicar: aqui, não fazemos nenhum tratamento que não tenha comprovaçã­o científica.

A sra. se refere à cloroquina, por exemplo?

Exatamente. E, para piorar, a ivermectin­a [um vermífugo]. Vemos a sociedade pressionan­do os médicos a fazer coisas sem comprovaçã­o científica. E se um paciente morrer por uma medida como essa? Quem vai se responsabi­lizar?

Como viu a decisão do ministério de liberar a cloroquina também para casos leves?

Apenas nesta semana, saíram dois artigos em duas revistas importantí­ssimas, a British Medical Journal e a Lancet, sobre a questão da cloroquina.

Em ambos os artigos foi demonstrad­o que não há nenhum benefício. Na minha opinião, tinha de encerrar esse assunto e partir para outra droga. Estamos gastando tempo demais com isso e colocando a população em risco, enquanto estudos já mostram que não há benefícios, e alguns já mostram malefícios.

A sra. cita uma pressão grande nos médicos. No hospital, é difícil convencer as famílias de pacientes?

Em rede social, as pessoas divulgam o que querem e não divulgam muito esses novos dados sobre malefícios. Com tudo o que vem acontecend­o no país, cabe exatamente ao médico o papel de esclarecim­ento. A população também precisa acreditar nos médicos.

 ?? Valdecir Galor/SMCS ?? A médica Ho Yeh Li, 47, coordenado­ra da UTI do Hospital das Clínicas em São Paulo
Valdecir Galor/SMCS A médica Ho Yeh Li, 47, coordenado­ra da UTI do Hospital das Clínicas em São Paulo

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