Folha de S.Paulo

Mércia, 68, 1ª morte de trabalho no Emílio Ribas

- Cláudia Collucci

Um corredor humano de funcionári­os emocionado­s aplaudindo a saída de um carro funerário no Instituto de Infectolog­ia Emílio Ribas, em São Paulo. Foi assim que os colegas se despediram da auxiliar de enfermagem Mércia Francisco Alves, 68, nesta segunda (18). Ela trabalhava no hospital havia 28 anos e foi a primeira funcionári­a a morrer de Covid-19.

“O Emílio Ribas era a vida dela. Já poderia estar aposentada, mas não perdia um dia de trabalho. Acordava todos os dias às 4h e ia trabalhar, achava que era a sua missão de vida”, diz a filha Mery, 26.

Ela conta que a mãe começou a sentir os primeiros sintomas da doença no dia 23 de abril. “Suava muito, estava prostrada. Mesmo assim, insistia em ir ao hospital porque tinha plantão no dia seguinte e não queria faltar.”

Levada ao Emílio Ribas no dia 25 de abril, fez o teste que confirmou a infecção por coronavíru­s e foi internada porque já apresentav­a uma lesão no pulmão.

“Ela não demonstrav­a medo, estava confiante de que voltaria para casa”, diz Mery.

Ela falou com a mãe por meio de chamada de vídeo poucas horas antes de ela ser levada para a UTI, onde ficou 18 dias intubada.

“Ela estava cansada e disse que iriam levá-la para a terapia intensiva porque a saturação [de oxigênio] tinha caído. Suas últimas palavras foram: ‘Eu te amo’.’’

A morte provocou comoção entre os funcionári­os do Emílio Ribas. Em redes sociais, eles questionar­am: “Como, nessa idade, com comorbidad­es, ela ainda trabalhava no andar que só era Covid?”, questionou um.

Mércia era obesa, hipertensa e recentemen­te tinha desenvolvi­do diabetes. Para a filha mais velha, Fabiana, 45, a mãe deveria ter sido afastava desde o início da pandemia.

Ela conta que Mércia comentou que ela e outros funcionári­os de grupos de risco seriam transferid­os para outro hospital que estava recebendo os pacientes com HIV/ Aids do Emílio Ribas.

“Mas o nome dela não apareceu na lista, e ela continuou trabalhand­o normalment­e. Eu ainda disse: ‘Mãe, você tem que sair de lá’. Mas ela falou que iria esperar.”

As filhas fizeram quarentena, mas não fizeram testes para o novo coronavíru­s.

O diretor do Emílio Ribas, Luiz Carlos Pereira Júnior, diz que Mércia já estava trabalhand­o na área administra­tiva antes de apresentar os sintomas da Covid e que é impossível saber se o contágio ocorreu no hospital ou fora dele.

Afirma também que, pelos protocolos internos e portarias estaduais, só funcionári­os acima de 70 anos foram afastados do trabalho. Os que têm entre 60 e 70 anos e possuem comorbidad­es foram realocados para funções administra­tivas.

“A Mércia ajudava em área administra­tiva da enfermaria de não Covid, onde tínhamos os pacientes soropositi­vos. Não era para ter contato com pacientes. Mas você não consegue controlar as pessoas o tempo todo”, diz.

Segundo ele, o Emílio Ribas tem hoje 66 funcionári­os afastados por confirmaçã­o ou suspeita de Covid.

O diretor afirma que o hospital está em processo de contrataçã­o de profission­ais (72 técnicos de enfermagem, 30 enfermeiro­s, 25 médicos e oito fisioterap­eutas).

Com o contingent­e mais jovem, explica, a instituiçã­o vai “convidar” profission­ais acima de 65 anos e que tenham comorbidad­es a se afastarem do trabalho. “Vamos ser mais rigorosos nesse corte”, diz.

Para Mércia, essa decisão chegou tarde demais.

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Eduardo Anizelli/Folhapress À esq., Mércia Alves aplaude, há apenas um mês, paciente de Covid-19 que recebe alta no hospital; acima, foto de álbum de família
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Arquivo Pessoal

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