Folha de S.Paulo

Temos que reconhecer nossos privilégio­s

Isolado em sua casa com a mulher e a filha de três meses, o rapper paulistano faz uma live neste domingo (24) e diz não se obrigar a ser mais produtivo neste momento: ‘Tô de boa, trocando fralda’

- Victoria Azevedo

O rapper Projota mal vê a hora de poder levar a sua filha neném para passear. “A gente só fica rodando com ela em volta da mesa de jantar”, conta o pai de Marieva, de três meses. “Tô doido de vontade de botar ela no carrinho e passear na rua, ir para um parque, um shopping.”

A menina nasceu no dia 8 de fevereiro, pouco antes dos primeiros casos do novo coronavíru­s no Brasil e da recomendaç­ão pelo isolamento social em São Paulo. Desde então, ele e a família se retiraram em sua casa em Carapicuíb­a (SP), onde está “cercado de mato” e da qual só sai usando máscara para ir ao mercado.

Pai de primeira viagem, o cantor de 34 anos diz se preocupar com a saúde da filha desde os primeiros sinais do vírus, quando ainda não se sabia se os recém-nascidos estariam ou não no grupo de risco da Covid-19.

Ele e a mulher, a atriz Tâmara Contro, estão sozinhos com a filha em casa e se revezam nas tarefas domésticas. “Não tem uma divisão exata do que cada um faz, depende do dia e, principalm­ente, da neném”. De vez em quando, contam com a ajuda da sogra, que “vem dar uma desafogada aqui”, segue.

A ideia de ter uma babá ou alguém que cuidasse da filha foi descartada pelo casal antes mesmo da pandemia. “A gente queria poder viver essa experiênci­a e ser totalmente 100% presente ali para ela.”

Mas afirma que não é tarefa simples, ainda mais no contexto de quarentena. “É muito barra, não é fácil mesmo. Mas fico imaginando como é que é para outras pessoas, que têm que lidar com tudo isso e ainda um problemão financeiro que apareceu nesse momento. Temos sempre que reconhecer os nossos privilégio­s e ver que poderia ser muito mais difícil. Não posso ficar aqui reclamando. Vou arregaçar as mangas e cuidar da Marieva.”

Projota lançou seu primeiro trabalho em 2009, o EP “Carta aos Meus”. De lá pra cá, ganhou espaço na cena do rap ao lado de nomes como Rashid e Emicida, emplacou músicas em novelas e alcançou a marca de 1,5 bilhões de visualizaç­ões em seu canal no YouTube.

No caminho, sofreu críticas por se aproximar musicalmen­te do pop e foi acusado de “perder a essência do rap” —e diz que foi muito afetado por isso. “Ninguém coloca a própria arte na rua querendo que alguém fale mal dela ou da forma como ela é feita, ou do jeito que posiciono a minha carreira. Você planeja tudo para dar certo. Mas essa questão ‘se é rap ou não é rap’... pô, cara, que que é isso? Vamos enxergar tudo o que eu fiz e faço pelo hip-hop, as portas que eu abri. Ninguém vai tirar isso.”

Projota diz que se preocupa com os impactos da pandemia na cultura e que desde o começo percebeu que não haveria shows “por um bom tempo”. Um de seus primeiros compromiss­os profission­ais que percebeu que seria afetado foi o festival de música Rock in Rio Lisboa, em que ele se apresentar­ia em junho. O evento foi adiado para 2021.

“Não sabia nada do que ia acontecer, só sabia que o barato ia ser louco. E que a gente precisaria estar preparado emocionalm­ente para poder lidar com tudo o que viria pela frente.”

“Desde o começo eu sou a favor do ‘lockdown’ [bloqueio total]. Se tudo tivesse parado no começo, a gente estaria como estão alguns países da Europa agora, já saindo [da quarentena]. Agora, estamos num ponto questionan­do o que vai ser dos artistas, né? Porque o Projota dá um jeito, mas as pessoas sempre se esquecem dos pequenos. Eles são muito afetados.”

“O país está uma loucura, é ridículo isso que a gente tem visto e vivido todos os dias. Não é possível isso num momento como esse. A palavra é revolta

“O que me machucou muito foi pensar como isso vai afetar psicologic­amente a vida das pessoas. É difícil de falar, fico com medo até de ser gatilho [para alguém] trazer esse assunto à tona”, diz, com a voz embargada. “É triste, eu já passei por depressão e sei o quanto a situação financeira pode levar uma pessoa para isso. Eu não gosto nem de pensar nisso, de verdade, é muito difícil.”

Ele avalia que o valor do auxílio emergencia­l de R $600 do governofed­eral deveria ser maior. “O que o meu pai, que era mestre de obras, ia estar fazendo agora se [a pandemia] tivesse acontecido há 20 anos? Estaria trabalhand­o par ater dinheiro e conseguir compra ruma mistura, uma carne. Por isso que eu tento enxergar como éa perspectiv­ado outro, vi isso nome upai. Fica muito fácil para o Pro jota falar‘ fi caem casa ’. Evou continuar defendendo isso para quem pode. Mas nunca vou deixar de entender e reconhecer que muita gente não tem como ficar em casa.”

O rapper critica a crise política do governo federal brasileiro. “É surreal. O país está uma loucura, é ridículo isso que a gente tem visto e vivido todos os dias. Não é possível isso num momento como esse. A palavra é revolta.”

Ele afirma que nunca foi radical na política a ponto de “bater no peito e levantar uma bandeira”. Diz que criou naturalmen­te dentro dele um pensamento de esquerda, votou no PT e se decepciono­u com atitudes do governo petista. “Tive a consciênci­a de enxergar as coisas e não ser radical. Nunca levantei bandeira, simplesmen­te era uma visão que combinava com o que eu acreditava e que fez muito por mim e pelos meus familiares.”

Reforça que conseguiu entrar na faculdade por meio do Prouni (Programa Universida­de para Todos), criado durante o governo Lula. “Não posso esquecer esse tipo de coisa. Mas, ao mesmo tempo, não posso também falar ‘faz o que quiser porque você me deu a minha faculdade’.”

“Me deixa sem graça ver o radicalism­o dessa extrema-direita da galera que acredita que eles têm um Deus na Presidênci­a. Não consigo entender. Um cara [Lula] me deu uma faculdade e eu não o vejo assim. Esse cara não deu nada para eles e eles o enxergam como um Deus.”

O rapper ajeita a câmera de seu aparelho enquanto fala com a coluna por chamada de vídeo —na posição vertical, sem perceber, estava mostrando só o topo de sua cabeça. Ele vestia um casaco moletom amarelo neón e estava sentado num sofá da sala de sua casa. “A minha esposa está lá em cima com a Marieva agora. Ela estava chorando muito, mas parou pra gente poder conversar. Achei fantástico. Essa menina é muito educada”, conta, entre risos.

O cantor diz que a ideia de um ócio criativo dos artistas durante a quarentena não faz sentido para ele. “Sempre fiz muita música, independen­temente de onde estivesse. Me perguntam se eu estou compondo muito. Não, eu tô trocando fralda, na real [ri]. E estou de boa em relação a isso porque acabei de produzir um disco inteiro”, conta, referindo-se ao CD “Tempestade numa Gota d’Água”, cujas quatro primeiras faixas foram lançadas nas plataforma­s digitais na sexta (22).

Se anima ao falar do álbum. Segundo diz, o novo trabalho marca um momento de sua vida que é muito “família e espiritual”. “Ele fala menos do externo e mais do interno. É um CD que mescla bastante esse lance da mensagem forte com o entretenim­ento”, diz. Além das quatro músicas, o cantor também lançou o clipe de uma delas, a dançante “Ombrim”, dirigido por Lázaro Ramos, e que conta com a participaç­ão do ator e da atriz Taís Araujo.

Algumas das novas canções serão apresentad­as em primeira mão em uma live que o artista fará em sua casa, neste domingo (24), às 20h. Ela será transmitid­a pelo canal do YouTube do rapper. “Vai ser aqui mesmo, olha”, diz, enquanto vira o aparelho para mostrar o ambiente da sala. “Vai mudar tudo. Vou arrastar umas coisas, a mesa de sinuca, os sofás e vamos fazer aqui dentro.”

E como será o pós-pandemia? “Acho que não vai mudar nada, não. Não vou mentir para você. Podia ficar falando que eu sinto que as pessoas… Eu torço que sim, mas acho que não. Nem lavar a mão a gente vai lavar, tá ligado? O básico não vai ser assimilado ou incorporad­o no dia a dia das pessoas. A gente está no meio do negócio e você vê vários carros na rua. Então como eu posso acreditar que tudo vai ser lindo depois?”, reflete.

Mas pretende que a sua própria vida passe por mudanças. “Sempre fui um cara que fica muito gripado, pela rotina de não dormir, de fazer show à noite, viajar. Minha imunidade sempre foi baixa. E agora eu tô há meses sem pega ruma gripe, uma coisa que eu não conheço. E percebendo como esse cuidado faz diferença. Vou ter que me cobrar pra ter essa mudança na minha vida depois.”

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Arquivo pessoal Autorretra­to do rapper Projota, feito em sua casa, em SP, na quarentena

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