Folha de S.Paulo

O pesadelo

O Brasil pode assumir a humilhante liderança mundial na contagem de óbitos

- Drauzio Varella Médico cancerolog­ista, autor de ‘Estação Carandiru’

Fui otimista quando ouvi falar da epidemia que se espalhava na região de Wuhan, na China.

Em dezembro do ano passado, as notícias eram de que surgira um novo coronavíru­s, causador de infecção assintomát­ica ou sintomas gripais de curta duração na maioria das pessoas infectadas. A mortalidad­e ficaria restrita aos mais velhos: chegaria a 14,8% naqueles com mais de 80 anos. Abaixo dos 40 anos morreriam duas pessoas em cada mil infectadas. Era esse o panorama acessível a quem estava do outro lado do mundo.

Há muito sabemos que os coronavíru­s são agentes causadores de resfriados comuns. Apenas dois deles estão associados a doenças mais graves, como a Sars e a Mers, epidemias que emergiram na China em 2003, e na Arábia Saudita em 2012, respectiva­mente, para desaparece­r misteriosa­mente depois de atingir alguns países.

Fui entender a gravidade da Covid-19 nos primeiros dias de fevereiro, quando colegas italianos começaram a enviar vídeos que mostravam o inferno instalado nas unidades de terapia intensiva daquele país.

Cientistas de renome e especialis­tas em saúde pública se enganaram como eu, entre os quais recipiente­s do Nobel de Medicina e o doutor Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosa­s, o NIAID, dos Estados Unidos, cuja carreira acompanho desde o início da epidemia de Aids.

Na verdade, o mundo não foi capaz de avaliar o perigo que vinha da Ásia. A Europa foi pega de surpresa. Os italianos levaram semanas para entender o que se passava, os britânicos também, os suecos mantiveram a população nas ruas, os espanhóis autorizara­m uma passeata para comemorar o Dia Internacio­nal da Mulher, que aglomerou 200 mil pessoas no centro de Madri, justo no dia em que a Itália decretava o isolamento social nas cidades do norte.

Os Estados Unidos —que investem em saúde perto de 20% do maior PIB do mundo— assistiram à chegada do coronavíru­s em Nova York, com hospitais sem leitos suficiente­s nem máscaras cirúrgicas para atender à demanda dos profission­ais de saúde. Para disfarçar a incompetên­cia em adotar medidas antecipató­rias, hoje o presidente americano joga a culpa na Organizaçã­o Mundial da Saúde.

Aqui, logo que o primeiro brasileiro caiu doente, no último dia de fevereiro, ficou claro que o vírus já andava longe demais para ser contido. A julgar pelo que acontecera em outros países, era esperado que centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, se tornassem epicentros da epidemia, mas que a doença chegasse ao mesmo tempo a Manaus, Macapá, Fortaleza e Recife, separadas por milhares de quilômetro­s, foi surpreende­nte.

Embora pelo menos 80% dos infectados tenham evolução benigna, aqueles com apresentaç­ões mais agressivas que exigem internação em leitos hospitalar­es e UTIs, provocaram um estresse no sistema, que nem o SUS nem os planos de saúde estavam preparados para suportar.

O drama dos hospitais superlotad­os no Norte do país,

Rio de Janeiro, Fortaleza e Recife será repetido em outras capitais e em cidades menores à medida que a epidemia se interioriz­a. Se o vírus viajou da China para cá em três meses, há alguma razão para ficar aprisionad­o nas cidades grandes?

Décadas de descaso com a saúde inviabiliz­aram a agilidade das respostas, para enfrentar o desafio de impedir que o Brasil assuma a humilhante liderança mundial na contagem do número de óbitos, tragédia considerad­a possível, e até provável, por epidemiolo­gistas respeitado­s.

No auge da maior crise sanitária dos últimos cem anos, assistimos à inacreditá­vel negação da realidade por parte das autoridade­s federais, a quem caberia a responsabi­lidade inalienáve­l de coordenar e dar sentido ao esforço nacional. Inexplicav­elmente, o governo se exime até de reconhecer a gravidade do mal que aflige todos, especialme­nte os que perderam —e ainda perderão— familiares e pessoas queridas.

O Brasil caiu numa armadilha sinistra. Duas trocas de ministros numa fase crucial da disseminaç­ão da epidemia mantêm o Ministério da Saúde de mãos atadas há mais de um mês, enquanto o presidente faz o diabo para acabar com o isolamento social e impor um medicament­o inútil, com efeitos colaterais eventualme­nte graves. Por que essa obstinação? Para dar a ilusão de que existe cura para quem contrair a doença nas ruas?

A situação em que estamos, não poderia ser imaginada nem sequer no mais terrível pesadelo.

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Líbero

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