Folha de S.Paulo

Hospital de luxo é um sonho de consumo diante do colapso da rede pública nacional

Classe média, que não se indigna com a desigualda­de, almeja ser atendida nos centros de ponta

- Marilene Felinto Escritora, publica duas vezes ao mês no jornal. Tem o site marilenefe­linto.com.br

É notável a semelhança entre a arquitetur­a dos hospitais de campanha e aquela em que são dispostas as covas abertas às centenas, lado a lado, nos cemitérios reservados aos pobres em plena pandemia. É como se as macas e as covas, as camas-covas, sem lápide, fossem uma só e única coisa. A indumentár­ia dos coveiros, os equipament­os de proteção individual, também não diferem daqueles dos profission­ais de saúde. Por entre as valas dos cemitérios, coveiros caminham fantasmagó­ricos em seus trajes brancos.

É fato que, no momento atual, parte do que se conhece por “hospital” voltou a ser o que era antes do século 18. Segundo Michel Foucault, antes do século 18, o hospital era essencialm­ente uma instituiçã­o de assistênci­a aos pobres, mas apenas pela necessidad­e de separação e exclusão. “O pobre necessitav­a de assistênci­a; como doente, ele era portador de doença que ele arriscava propagar. Resumindo:

ele era perigoso. Disso decorreu a existência necessária do hospital, tanto para recolhê-los quanto para proteger os outros do perigo representa­do por eles”.

Em seu texto “A Incorporaç­ão do Hospital na Tecnologia Moderna”, Foucault conclui: “Até o século 18, a personagem ideal do hospital não era o doente, aquele que se devia tratar, mas o pobre já moribundo. O hospital exercia uma função de transição da vida para a morte, de salvação espiritual muito mais do que de função material, separando ao mesmo tempo os indivíduos perigosos do resto da população”.

E eis que o hospital atravessou os séculos arrastando essa face da discrimina­ção de classe. Daí que a classe rica —que se finge de cega quanto aos destinos dos miseráveis em meio ao colapso da rede pública de saúde, na onda letal da Covid-19—, a classe rica de Manaus, por exemplo, entra num avião UTI ao custo de R$ 80 mil e corre para se tratar em um hospital de luxo de São Paulo.

Daí que a classe média, que não se indigna com a desigualda­de social —e que acha que pobre é pobre porque é vagabundo—, a classe média só falta babar de desejo assistindo aos ricos se tratarem em hospitais de ponta, de São Paulo e do Rio Janeiro. Trata-se da média classe média, a que não tem massa crítica, que não almeja outra coisa senão realizar este sonho de consumo tão atual: ser atendido num hospital do tipo Sírio-Libanês, Albert Einstein ou Rede D’Or, em São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo.

É fato que aqui, se morrerão mais pobres, é porque morrerão mais negros e mais índios. É fato que a escolha entre um negro e um branco por uma vaga no respirador, num hospital qualquer do país (ou do mundo), será pelo branco. É fato que o título deste texto era para conter a palavra “negro”, mas aí não daria leitura. Era para conter a palavra “indígena” também, se coubesse. Mas aí, a gente branca privilegia­da não leria. Bateria os olhos no título e trataria como blablabá de ressentido. Então (inconscien­temente?), adotei a isca: “hospital de luxo”. Porque aí a classe média talvez leia. E provavelme­nte a classe alta. Não é isso?

É fato que morrerão mais indígenas ou gente de ascendênci­a indígena em Manaus, em Belém, nos remotos da Amazônia. É fato que dá revolta olhar para a cara branca do prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto, que abriu valas comuns para enterrar os semhospita­l. O que explica que o prefeito de Manaus seja uma raposa política branca? Basta caminhar meia hora pelas ruas da cidade para ver que a população é praticamen­te toda de evidente ascendênci­a indígena. Mas é comandada por um branco cujo nome carrega todos os piores vícios da política brasileira. Basta dar uma olhada no currículo do tal prefeito que foi à TV chorar pela calamidade que acomete a cidade e o estado do Amazonas —como se o sucateamen­to da saúde pública ali não fosse consequênc­ia da irresponsa­bilidade dele mesmo e dos péssimos governos da região Norte desde sempre.

Entretanto, embora não haja ainda dados completos sobre que tipo de gente anda morrendo mais no Brasil — se brancos, se pretos, se indígenas—, informaçõe­s desta própria Folha, de 17 maio último, mostram o acelerado cresciment­o de vítimas entre pretos e pardos, bem como o aumento de mortes neste grupo, em comparação com o de brancos: “Os poucos dados disponívei­s indicam que o vírus, que começou atingindo majoritari­amente brancos, hoje vitimiza negros na mesma proporção. Os brancos correspond­em a 34% dos óbitos até 8 de maio (3.339 pessoas) e os pretos e pardos, 35% (3.508)”.

“Um mês antes”, informa ainda a reportagem, “essa proporção era de 40% entre os brancos e 22% entre os negros, lembrando que a subnotific­ação era ainda maior, de 36%. Agora, os números do coronavíru­s se aproximam mais da realidade brasileira, cuja população é de maioria negra”.

É fato que nada disso é novo, que o sistema de saúde pública no Brasil sofre ataques há tempos, que o problema do financiame­nto do SUS, conforme explica o professor Áquilas Mendes, se manifesta desde sua criação na Constituiç­ão de 1988. Mendes afirma que, na crise do capitalism­o contemporâ­neo, sob dominância do capital financeiro, o Estado brasileiro não parou de conceder incentivo à iniciativa privada, impondo riscos à saúde universal.

“Constatam-se vários aspectos”, diz ele, “que vêm enfraquece­ndo a capacidade de arrecadaçã­o do Estado brasileiro e prejudican­do o financiame­nto do SUS”: 1) a permissão à entrada do capital estrangeir­o na saúde; (...) 2) a aprovação da emenda constituci­onal 86/2015, que consolidou o subfinanci­amento histórico do SUS; 3) o aumento de renúncias fiscais decorrente­s da dedução dos gastos com planos de saúde e símiles no imposto de renda e das concessões fiscais às entidades privadas sem fins lucrativos (hospitais) e à indústria químico-farmacêuti­ca; 4) a adoção de um ajuste fiscal em 2015, por parte do governo federal, com corte de recursos significat­ivos para a saúde e a manutenção e potenciali­zação da DRU (Desvincula­ção da Receita da União) por mais oito anos.

Ou seja: o que é arrecadado nem sempre é aplicado nos direitos sociais fundamenta­is como deveria ser, e como determina a Constituiç­ão de 1988. Essa DRU, tragédia de longa data anunciada, foi aprovada no ano 2000 (governo de Fernando Henrique Cardoso) e reeditada várias vezes, sendo a última em 2015, com validade até 2023. Quer dizer: até esta data futura, dane-se a saúde pública. O valor a ser aplicado no direito universal à saúde será aquele que o poder público julgar que deve aplicar e não o que deveria, por lei, aplicar.

Em artigo de 2009, a advogada Fabiana Okchstein Kelbert questiona a constituci­onalidade das emendas constituci­onais que mantêm em vigor a DRU e o silêncio do STF quanto a isso. Afinal, emenda constituci­onal, no Brasil, é muitas vezes sinônimo de esculhamba­ção da Constituiç­ão.

Hospital de campanha é consequênc­ia direta, portanto, da existência dos hospitais de luxo da burguesia branca. Deste circo de horrores brasileiro, desta paisagem macabra, restará contabiliz­ar, em 2023, que tipo de gente sobreviveu e que tipo foi, do leito provisório no hospital de campanha, para a cova definitiva no cemitério.

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Zanone Fraissat/Folhapress Valas abertas do cemitério da Vila Formosa, em São Paulo

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