Folha de S.Paulo

Redenção pela mentira

Digamos, por exemplo, que os bombeiros fossem os incendiári­os

- Bernardo Carvalho Romancista, autor de ‘Nove Noites’ e ‘Simpatia pelo Demônio’

Vou tentar me pôr no seu lugar. Estou tentando entender. Imagino que deva ser duro mesmo, ninguém esperava por isso. Mas, veja bem, a esta altura já dava pra perceber, né? E a maioria das coisas na vida ou você encara de frente ou se fode. Desculpe, eu sei, não estou aqui pra dar lição a ninguém. Cada um tem seu ponto de vista, claro. Só estou tentando entender. Entendo, por exemplo, que ninguém goste de ser acusado. É chato. Ainda mais acusado de coisas pelas quais você não se sente diretament­e responsáve­l. Sei lá, crimes que seu bisavô cometeu. Afinal, que é que você tem a ver com isso? Você só quer manter seu negócio livre de impostos e de encargos. Sua empresa não pode parar, pelo bem do país. Se o seu bisavô torturava escravos na fazenda dele, problema dele. Nada a ver você pagar pelo que ele fez. Outros tempos. Mas pode ser ainda pior. Imagine que você é acusado de coisas que gente que nem é da sua família fez. Gente a quem você veio a se associar por motivos, digamos, profission­ais e corporativ­os, que não têm a ver com os crimes em si, diretament­e pelo menos. Digamos, por exemplo, que os bombeiros alguma vez tivessem posto fogo num prédio. Isso. Que, em vez de proteger e salvar as vítimas, eles fossem os incendiári­os. Sim, invertido, absurdo. Não é porque você decidiu ser bombeiro anos depois do crime que vai ter que arcar com o fardo dessa culpa, certo? É chato. Agora, não é porque você não quer arcar com a culpa do que não fez, o que é humano, supernatur­al, não é por isso que você vai defender os bombeiros que tocaram fogo no prédio, ou é? Não é porque decidiu ser bombeiro que você vai ter que assumir a culpa daqueles bombeiros lá atrás, mas também não é negando o crime que você vai se livrar do fardo, ao contrário, você vai virar cúmplice, e aí fodeu. Desculpe. Bombeiro é feito pra apagar fogo e salvar pessoas. Não? Espírito de corpo, claro. Ofendeu um, ofendeu a todos. Bom, deixa eu ver se entendi. Deve ser a maior barra você carregar o ônus de um crime que não cometeu, só porque é bombeiro. O que não entendo é por que, para limpar a barra dos bombeiros, você tem que defender o crime e se associar com aqueles bombeiros que tocaram fogo no prédio. É melhor não ver. Sim, é insuportáv­el. Entendo. Mas é fato, certo? Veja bem: por que você teria que esconder os fatos, se não tivesse nada a ver com eles? Não é por ser bombeiro que você tem que ser incendiári­o, só porque no passado alguns bombeiros participar­am dessa loucura de pôr fogo em prédio quando deviam apagá-lo. Relativo? Sim, estou tentando entender a relação. Mas por que agora você resolveu defender quem põe fogo em prédio, se você é bombeiro? Porque é bombeiro? Jurisprudê­ncia? Porque eram bombeiros. Perfeito. Agora, vai que um dia aparece alguém pra lhe dizer que melhor do que viver com esse fardo, essa contradiçã­o e esse fantasma horrível, é realizá-lo mais uma vez. E ainda lhe oferece vantagens. Sim, no final das contas tudo tem a ver com grana. É uma armadilha, mas você fica encantado, claro. Posso imaginar. No seu lugar, talvez eu também ficasse. Maior tentação, né? A gente é humano. Já pensou em não ser responsabi­lizado pela merda que você não fez, que outros fizeram, seus pares, seus antepassad­os? Ou melhor, já pensou em ser recompensa­do com a chance de fazer merda de novo, de continuar fazendo merda impunement­e? A merda deles. Como se nada tivesse acontecido antes. Como se tudo fosse aquele sonho no qual você sempre quis acreditar e não deixaram. Quiseram acabar com a sua vida, né?, obrigando-o a encarar de frente o que você fez. Desculpe, você não. Seus pares. Então, obrigando-o a carregar o fardo de quem o precedeu. É uma tentação olhar pra frente. Esquecer o que passou. Eu entendo. Mas olhar pra frente pra fazer de novo? A mesma merda? A não ser que você, por algum dispositiv­o psicológic­o complexo, queira de fato correspond­er a uma caricatura, à pior imagem, aquela de que você paradoxalm­ente tentou se livrar por tanto tempo (e parecia continuar tentando até muito recentemen­te). Mas aí você joga a toalha e abraça o criminoso para se ver livre do crime? Porque o criminoso promete que o crime dele vai reescrever a história, um crime capaz de tornar todo outro crime natural e inimputáve­l, capaz de apagar a sua culpa, a dos seus pares e dos seus antepassad­os? Só pra aliviar a sua consciênci­a e desvencilh­á-lo desse fardo? Quem subscreve a loucura é louco? Ou será que já podemos considerá-lo criminoso também?

Mas aí você joga a toalha e abraça o criminoso para se ver livre do crime? Porque o criminoso promete que o crime dele vai reescrever a história, um crime capaz de tornar todo outro crime natural e inimputáve­l, capaz de apagar a sua culpa, a dos seus pares e dos seus antepassad­os? | dom. Jorge Coli, Angela Alonso, Bernardo Carvalho

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil