Folha de S.Paulo

A espada sobre a lei

- Por Jorge Zaverucha

Três décadas após o fim da ditadura, as Forças Armadas mantêm forte presença no aparato do Estado, decorrênci­a da fragilidad­e das instituiçõ­es e da baixa convicção democrátic­a por parte das elites civis, avalia cientista político. Esse arranjo político instável, manifestad­o em resquícios de autoritari­smo na Constituiç­ão, ganhou expressão máxima com Bolsonaro, que busca nos militares a base de sustentaçã­o de seu governo

José Sarney tomou posse da Presidênci­a de República em 15 de março de 1985. Apoiador destacado do regime militar nas duas décadas anteriores, encarregou-se de dar um fim ao mesmo. Oficialmen­te, inicia-se a transição para a democracia. Decorridos 35 anos, chegamos lá? Primeiro é preciso definir o conceito de democracia. Farei isso mais adiante.

Primeiro irei tratar de um tema nem sempre muito destacado pela ciência política e pela mídia: a grande presença militar no aparato de Estado brasileiro. Caracterís­tica inexistent­e em países de democracia­s sólidas. Esta presença castrense não é causa, mas sim consequênc­ia da fragilidad­e das instituiçõ­es e da falta de um ethos democrátic­o por parte das elites civis.

A própria assunção de Sarney teve uma decisiva cunha castrense. Quem deveria assumir a Presidênci­a era Ulysses Guimarães, mas foi vetado pelas Forças Armadas. Ulysses abriu mão da Presidênci­a para evitar um retrocesso.

Como ele, posteriorm­ente, afirmou: “Eu não fui ‘bonzinho’ coisa nenhuma. Segui as instruções dos meus juristas. O meu ‘Pontes de Miranda’ estava lá fardado e com a espada me cutucando que quem tinha de assumir era o Sarney”.

O “Pontes de Miranda” chamava-se general Leônidas Pires, que no governo Sarney seria ministro do Exército. O próprio Sarney relata que só teve certeza de que assumiria o posto de presidente na madrugada do dia da posse, quando Leônidas ligou para ele e o cumpriment­ou: “Boa noite, presidente”. Só aí foi dormir.

A presença marcante de Leônidas foi também sentida na redação da Constituiç­ão de 1988. Houve uma proposta para a extinção das Polícias Militares, que foi levada ao presidente da Câmara, Ulysses Guimarães. Ele abateu a ideia no seu nascedouro. Alegou que “já não podia mudar nada porque tinha um compromiss­o com o general Leônidas”

O peso da espada de Dâmocles de Leônidas fez-se sentir na discussão sobre o que viria a ser o artigo 142 da Constituiç­ão. Este artigo diz que as Forças Armadas “são instituiçõ­es nacionais permanente­s e regulares, organizada­s com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constituci­onais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Como é possível, contudo, se submeter e garantir algo simultanea­mente? Segundo o italiano Giorgio Agamben, “o soberano, tendo o poder legal de suspender a lei, colocase legalmente fora da lei”. Portanto, cabe às Forças Armadas brasileira­s o poder soberano e constituci­onal de suspender a validade do ordenament­o jurídico, colocando-se legalmente fora da lei. Numa democracia, as Forças Armadas não garantem nem os Poderes constituíd­os nem a lei e a ordem. Ocorre exatamente o reverso.

O artigo 142 é ambíguo. Pode ser interpreta­do de modos distintos, de acordo com os interesses dos atores envolvidos. A raiz do problema é saber quem define o que é ordem e que tipo de lei, ordinária ou constituci­onal, as Forças Armadas devem, supostamen­te, defender. O artigo permite o golpe de Estado constituci­onal. Por isso mesmo, nenhuma democracia que se preze o insculpiri­a em seu texto constituci­onal.

Ordem não é um conceito neutro, e sua definição operaciona­l em todos os níveis do processo de tomada de decisão política engloba escolhas que refletem as estruturas políticas e ideológica­s dominantes. Portanto, a noção de (des)ordem envolve julgamento­s ideológico­s e está sujeita a estereótip­os e preconceit­os sobre a conduta (in)desejada de determinad­os indivíduos e/ou grupos.

Além do mais, tal artigo não especifica se a lei é constituci­onal ou ordinária, se a ordem é política, social ou moral, nem quem define quando é que a lei e a ordem foram violadas.

Os constituin­tes, em 1987, na primeira versão da Constituiç­ão, retiraram dos militares o tradiciona­l papel de guardiães da lei e da ordem. Tal tentativa irritou o general Leônidas. Ele ameaçou zerar todo o processo constituin­te, caso a decisão não fosse revista. Os constituin­tes então cederam em pontos secundário­s, mas mantiveram o papel de garantes das Forças Armadas.

Curiosidad­e: a ideia de garantes foi copiada pelas constituiç­ões pinochetis­tas e sandinista­s. No Chile, todavia, findo o regime militar, o artigo foi abolido. No Brasil persiste até hoje, mesmo após 13 anos de governos de esquerda na Presidênci­a.

No fundo, a luta pela manutenção do artigo 142 decorre do fato de que ele define quem estabelece o controle social do país em situação de crise. Um sinal de que nossa elite não possui um ethos democrátic­o. Aposta em um governo democrátic­o eleitoral, não em um regime democrátic­o.

No Brasil, as Forças Armadas deixaram o governo, mas não o poder. A narrativa castrense é mantida até hoje. As Forças Armadas acreditam que defenderam a democracia brasileira em 1964, pois teriam impedido que o país se tornasse uma nova Cuba.

Os militares saíram com sua autoestima em alta. Portanto, aptos para reivindica­r sua ampla presença no aparelho de Estado brasileiro. O grau dessa presença teria a ver com o fortalecim­ento, ou não, do poder civil.

De fato, a Constituiç­ão de 1988 inovou em várias áreas, porém deixou praticamen­te intacto o capítulo a respeito das Forças Armadas existente nas constituiç­ões de 1967 e 1969. As Polícias Militares, por exemplo, já mencionada­s, continuara­m a ser não apenas força reserva, mas também auxiliar. Nas democracia­s, somente em período de guerra é que as forças policiais se tornam forças auxiliares do Exército.

Em tempo de paz, o Exército é que atua como reserva da polícia, indo em sua ajuda quando esta não consegue debelar sérios distúrbios sociais. As democracia­s passam uma linha clara separando as funções da polícia das funções das Forças Armadas. Não no Brasil.

As Polícias Militares estão, todavia, submetidas aos governador­es de estado e à Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), órgão do Exército Brasileiro. Conforme ressaltou o sociólogo Charles Tilly, caso queira julgar se um Estado é democrátic­o ou não, levando em conta uma única caracterís­tica, um excelente guia é verificar se a polícia se reporta aos militares ou às autoridade­s civis”. As PMs se reportam a ambas as autoridade­s.

Não se pode descurar o fato de que a redação da Constituiç­ão de 1988 foi feita exclusivam­ente pelas autoridade­s civis. A enorme presença de enclaves autoritári­os na mesma deuse via consentime­nto. Há, portanto, um arranjo político em que os civis se contentam com uma democracia eleitoral (semidemocr­acia) em troca da não volta do regime militar.

As transições latino-americanas procuraram desmilitar­izar a política, tentando levar os militares a se concentrar­am em sua atividade primeira, ou seja, a defesa das fronteiras do Estado. Essa tentativa fracassou no Brasil.

O governo Bolsonaro conta com nove ministros militares, alguns deles da ativa, além do porta-voz presidenci­al. O vice-presidente é general do Exército. Estima-se que cerca de 3.000 militares ocupem cargos de confiança no segundo escalão.

Bolsonaro montou um verdadeiro bunker militar em torno de si. Foi uma forma de repolitiza­r e cooptar as Forças Armadas como método de sustentaçã­o de um governo sem apoio congressua­l estável.

A militariza­ção da segurança pública é um processo crescente que atinge seu pico no atual governo. Entenda-se por militariza­ção o processo de adoção e uso de modelos, conceitos, doutrinas, procedimen­tos e pessoal militares em atividades de natureza civil.

A militariza­ção é crescente quando os valores da Exército se aproximam dos valores da sociedade. Consequent­emente, quanto maior o grau de militariza­ção, mais tais valores se superpõem. A retórica vigente é a de “guerra” às drogas e de “combate” aos delinquent­es através do uso de “forças-tarefas”.

Agrande maioria dos cientistas políticos e da mídia (inter)nacional difundiu a errônea ideia de que o Brasil é uma democracia consolidad­a. A situação atual em que nos encontramo­s é a melhor prova de quão equivocada é essa interpreta­ção.

As principais instituiçõ­es não funcionam a contento. Vide o Congresso. A despeito de ter aprovado boas medidas recentemen­te, conta com 1/3 de seus parlamenta­res respondend­o a processos na Justiça. São 160 deputados e 38 senadores acusados de corrupção, lavagem de dinheiro, estelionat­o e improbidad­e administra­tiva.

O STF é uma corte com tintura partidária, que nem sempre zela pela Constituiç­ão. Vide o recente caso em que um ministro rasgou a Carta Magna permitindo que a ex-presidente Dilma Rousseff mantivesse seus direitos políticos, mesmo após ser afastada do cargo.

E o que dizer do decano da Suprema Corte declarando que Bolsonaro não tem estatura para ser presidente da República, esquecendo de que sua função é tão somente julgar?

O propósito das Forças Armadas é defender a sociedade, não a definir. Sem a existência de instituiçõ­es sólidas e de respeito aos valores democrátic­os, crises de governo ameaçam se transforma­r em crises institucio­nais.

Ante tal possibilid­ade, os militares se fortalecem. E grupos civis disputam o apoio castrense. Incentiva-se o pretoriani­smo moderado em vez da neutralida­de das Forças Armadas.

Mas, retomando a pergunta do início do texto, o que vem a ser uma democracia? Ela está em risco? A resposta depende da concepção metodológi­ca utilizada. Os subminimal­istas, inspirados no economista Joseph Schumpeter, diriam que não. Para eles, basta haver competição eleitoral livre e limpa -o que o Brasil possui desde 1990.

Essa concepção de democracia põe em relevo a escolha de governante­s, não a forma como o poder é exercido. Tem a seu favor a operaciona­lização do conceito. Onde há

O grau de acomodação entre civis e militares varia com as circunstân­cias políticas. A novidade é que a Presidênci­a passou a ser exercida por um militar eleito pelo voto popular, mas que considera o Exército a “âncora de seu governo”. A declaração confere muito peso político aos militares. Parece ser algo inédito na história republican­a

eleições, existe democracia; onde não há, por conseguint­e, instaura-se a não democracia (autoritari­smo).

É um mundo binário, de consequênc­ias perniciosa­s, pois reduz a democracia a um mero método. Não leva em conta a lição de Tocquevill­e segundo a qual a democracia se justifica quando favorece o bem-estar do maior número de pessoas. E o Brasil é um belo caso de “irresponsa­bilidade social”.

Já os minimalist­as diriam haver outros indicadore­s para julgar se um regime é democrátic­o. Eleição seria apenas um deles, ao lado, por exemplo, da violência homicida e do controle civil sobre os militares federais e estaduais. Por razão de momento e espaço, analisemos este último indicador.

O controle civil sobre os miliares nunca houve, plenamente, desde a redemocrat­ização em 1985. Sempre pairou uma zona cinzenta que poderíamos chamar de hibridismo institucio­nal. Os ritos de uma democracia eleitoral formal convivem com enclaves e prerrogati­vas militares.

Esse pacto informal resulta em um equilíbrio instável, e o grau de acomodação entre civis e militares varia com as circunstân­cias políticas. A novidade é que a Presidênci­a passou a ser exercida por um militar eleito pelo voto popular, mas que considera o Exército a “âncora de seu governo”. A declaração confere muito peso político aos militares. Creio ser algo inédito na história republican­a brasileira e, quiçá, mundial.

O autoritari­smo puro não é a primeira preferênci­a do presidente, do Congresso ou das Forças Armadas. Bolsonaro sabe que, em caso de um golpe clássico, perderia seu emprego, pois capitão não manda em general em um regime castrense. A não ser que houvesse um monumental racha dentro das Forças Armadas, e o levante fosse liderado por capas médias castrenses. Não há qualquer sinal de que isso venha a ocorrer.

Vários congressis­tas, por sua vez, não querem ver sua casa fechada, pois seus “negócios” seriam afetados. E as Forças Armadas parecem ter aprendido as lições de 1964. Além do mais, seus interesses institucio­nais vêm sendo atendidos, com generosida­de, por governo e Congresso (salários, Previdênci­a e orçamento). Sem precisar dar um tiro sequer.

Grupos civis subvertem uns aos outros, dissemina-se a desconfian­ça e, consequent­emente, os compromiss­os não são respeitado­s. Como a crise decorrente da pandemia cresce a passos largos, o futuro dependerá, em muito, de em quem a população jogará a conta do número de mortos e da catástrofe econômica - bem como se a desordem se instalará nas ruas.

Caso a conta caia, majoritari­amente, no colo de Bolsonaro, as Forças Armadas poderão abandoná-lo por concluir que o apoio, mesmo que indireto, estaria afetando sua imagem institucio­nal. Caso Bolsonaro, contudo, saia fortalecid­o, abre-se uma nova possibilid­ade. Ele poderia se tornar um líder autocrata no estilo de Viktor Orbán, da Hungria, com apoio castrense.

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“Continênci­a”, da série Dilatáveis (1981), obra da artista plástica Regina Silveira
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