Folha de S.Paulo

Democracia urgente

Deputado, que desistiu de candidatur­a no Rio, defende que amplo espectro político democrata se una contra projeto fascista do bolsonaris­mo, que tem base consideráv­el e mobiliza setores da segurança pública e milícias em torno do presidente

- Por Marcelo Freixo

Recorri recentemen­te a uma imagem inspirada na sátira “Cândido, ou o Otimismo”, escrita pelo filósofo francês Voltaire (1694-1778) em 1759, para alertar o campo democrátic­o sobre a urgência de nos unirmos para frear o avanço do fascismo no Brasil.

No fim do livro, após ser submetido a uma sucessão de desgraças tão cruéis quanto as que vivemos agora, Cândido conclui que a melhor forma de lidar com as perversida­des do mundo é por meio do recolhimen­to e da disciplina no cuidado de si: “Devemos cultivar o nosso jardim”.

Apesar da beleza poética da imagem, vivemos um momento no Brasil que não permite que continuemo­s a nos comportar como o herói voltairian­o. Não podemos seguir cuidando das nossas flores quando um tufão já começa a arrancar nossas casas.

Não vivemos um tempo de normalidad­e, em que as tradiciona­is polarizaçõ­es se manifestav­am dentro dos marcos democrátic­os. Pela primeira vez temos no poder um governo eleito de extrema direita, com uma base social relevante e um projeto de poder fascista.

A democracia não é uma formalidad­e que se resume à realização de eleições. Ela é uma experiênci­a concreta, prática cotidiana, que inclui desde o pleno funcioname­nto das instituiçõ­es até o respeito à pluralidad­e de ideias, a liberdades e a garantias coletivas e individuai­s.

Esses valores estão sendo vorazmente destruídos pela sanha autoritári­a do presidente e seus seguidores mais radicais, que transforma­ram a violência e a intimidaçã­o em instrument­os de ação política.

Hoje, apesar de todas as barbaridad­es, Bolsonaro é aprovado por cerca de 25% do eleitorado e mantém uma base fanática, que o apoia de forma incondicio­nal, de aproximada­mente 10% dos brasileiro­s. Se não reagirmos para mantermos o setor mais radicaliza­do restrito a esses 10%, corremos o risco de vêlo se ampliar rumo aos 25% da população.

Diante dessa constataçã­o sombria, o campo democrátic­o precisa estar à altura do desafio e ser capaz de abrir mão dos projetos pessoais e partidário­s, superar as diferenças e se unir na defesa de algo maior: a vida, os direitos e a democracia, ameaçados pela dupla tragédia do fascismo e da pandemia.

Não precisamos de um grande líder para derrotar Bolsonaro. Necessitam­os de um grande projeto de reconstruç­ão nacional, que abra espaço a todas as nossas lideranças e seja capaz de superar o projeto autoritári­o bolsonaris­ta.

Essa nova plataforma precisa resgatar o espírito da Constituiç­ão de 1988, erigida sobre os escombros da ditadura como uma anunciação da democracia que desejamos. Um projeto que seja calcado na redução das desigualda­des e na garantia da dignidade de todos os brasileiro­s, através do fortalecim­ento do SUS, da valorizaçã­o da educação pública, da elaboração de uma política de segurança que respeite a vida nas favelas e nas periferias e do compromiss­o com a preservaçã­o ambiental.

A retirada de minha candidatur­a à Prefeitura do Rio de Janeiro é um gesto em prol da unidade. Estou me colocando a serviço da construção desse novo projeto de Brasil.

Faço isso com o sentimento de urgência de quem, por ser do Rio, conhece de perto a gênese e o significad­o do projeto bolsonaris­ta, fermentado no esgoto do submundo carioca e sustentado pelo tripé política, polícia e crime organizado.

A essência dessa combinação pode ser traduzida pela relação do clã com as milícias, que são quadrilhas formadas por agentes corruptos da segurança pública que dominam e exploram economicam­ente e eleitoralm­ente território­s pobres através do terror. Esse controle territoria­l confere ao fascismo da família Bolsonaro uma forte coloração de máfia.

Em 2008, eu presidi a CPI das Milícias na Alerj (Assembleia Legislativ­a do Rio de Janeiro), que resultou na prisão de todos os chefes de quadrilha. Em março daquele ano, o patriarca da família deu entrevista à BBC defendendo a legalizaçã­o das milícias e de seus negócios, revelando a simbiose de interesses entre o clã e o crime organizado.

“Elas oferecem segurança e conseguem manter a ordem e a disciplina nas comunidade­s. O governo deveria apoiá-las. E, talvez, no futuro, legalizá-las”, declarou.

Uma das peças para entender essa associação é o ex-policial militar e homem de confiança da família, Fabrício Queiroz. Operador do esquema das rachadinha­s no gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj, Queiroz construiu sua carreira em batalhões situados em áreas controlada­s por milícias. Após deixar a corporação, passou a representa­r os interesses dos Bolsonaro nesses território­s.

Queiroz apresentou o matador Adriano da Nóbrega ao clã. Os dois serviram no mesmo batalhão da PM e respondera­m juntos por homicídio. Adriano já tinha extenso currículo, havia trabalhado para a máfia dos caça-níqueis e mantinha negócios em áreas de milícia.

Parentes do criminoso eram laranjas nomeados no gabinete de Flávio para desviar dinheiro público. E o próprio Adriano, quando estava preso por assassinat­o, recebeu das mãos do 01, dentro da cadeia, a mais alta comenda do Legislativ­o fluminense, a Medalha Tiradentes.

Ao assumir a Presidênci­a, o chefe do clã passou a usar o cargo para expandir e aprimorar essa estrutura de poder fascio-miliciana, essencial ao seu projeto de poder.

O que caracteriz­a o fascismo bolsonaris­ta? O aspecto mais perigoso é a subversão do papel institucio­nal das forças de segurança, que em vez de servirem ao Estado passariam a atuar como guardas armadas presidenci­ais. O motim da PM no Ceará, alimentado por lideranças ligadas ao presidente, e a tentativa de interferên­cia na Polícia Federal são exemplos disso.

Paralelame­nte a essa ação dentro da estrutura estatal, Bolsonaro vem publicando ilegalment­e decretos que destroem a legislação de controle de armas e munições, no intuito de facilitar o armamento de seus grupos radicais de apoiadores e disseminar a violência.

O objetivo é formar milícias políticas que assumam o front da ofensiva golpista. Algo semelhante ao que ocorreu na Bolívia em 2019, quando grupos paramilita­res promoveram uma série de ataques a instituiçõ­es e autoridade­s ligadas ao governo, viabilizan­do o golpe de Estado. Umexemploé­og rupo 300 pelo Brasil, que está acampado em Brasília e participou das agressões a enfermeiro­s e jornalista­s.

Ao mesmo tempo que cria milícias políticas, Bolsonaro coloca em cargos-chave do governo generais linha-dura sem qualquer compromiss­o democrátic­o, como deixou claro o vice-presidente Hamilton Mourão em artigo publicado no dia 14 de maio no jornal O Estado de S. Paulo, em que tratou as instituiçõ­es republican­as como empecilhos ao exercício do poder presidenci­al.

Entretanto, as estratégia­s do presidente para ampliar os próprios poderes não se baseiam apenas na violência ena militariza­ção do Planalto.

Bolsonaro construiu, associando-se a lideranças e partidos evangélico­s, uma rede capaz de capilariza­r sua base de apoio por todo o Brasil e legitimar o autoritari­smo do seu governo porme ioda criação da imagem do líder que recebeu de Deus amissão de governar e de salvar o Brasil, algo constantem­ente dito nos cultos de que o presidente participa.

Os petar dos disparados diariament­e contra o jornalismo, a ciência e acultura também fazem parte dessa operação na esfera do simbólico para reforçara sua autoridade.

Mais do que tentar intimidar seus interlocut­ores e estimular agressões a jornalista­s, o presidente deseja criar uma nova economia da verdade, destruindo a legitimida­de das fontes tradiciona­is de produção de informação e conhecimen­to.

É lugar comum afirmar que ditadores não toleram dissenso, crítica e liberdade de expressão, mas às vezes nos esquecemos de como eles também odeiam os fatos, que nem sempre podem ser controlado­s.

Por isso é central ao sucesso de seu projeto decretara mor tedos fatos jornalísti­cos e científico­s e transforma­ra verdade e malgo fluido, alheio ao campo da razão, disseminad­o em grupos de WhatsApp e disputado na gritaria das redes sociais.

Essa operaçãon arra tivaéo passo decisivo que permite a conversão em mi todo homem que sempre represento­u oque há de pior no banditismo político brasileiro —eque agora está comprando o apoio de parlamenta­res do centrão, antiga tropa de choque de Eduardo Cunha.

Entretanto, a encarnação do mito, no bolsonaris­mo, não é só uma legitimaçã­o simbólica,é principalm­ente umcha ma doà açã opara os seus seguidores.

Isso porque, apesar do desígnio divino, sozinho o líder não conseguirá realizar amissão para a qual foi destinado, pois é constantem­ente fustigado pelas forças do mal, representa­das principalm­ente pelo sistema político —Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal. Por isso a ideia de destruição dosistemaé­tãopre sente e crucial para a retórica bol sonar ista.Éa reencenaçã­o farsesca do embate entre David e Golias.

Logo, a produção de crises é uma questão de sobrevivên­cia política e coerência narrativa. Cada conflito é meticulosa­mente escolhido, calculado e teatraliza dopara reforçara imagem do líder interditad­o.

A conclusão não poderia ser mais cristalina: o mito só cumprirá seu propósito quando o sistema, que é a democracia, for destruído.

O historiado­r Eric Hobsbawm (1917-2012) cravou em 1914 o início do século 20, inaugurado pelos horrores da 1ª Grande Guerra. Sei das armadilhas da historiogr­afia do tempo presente, mas concordo coma historiado­ra Lili aSchw ar cz, que disse que o século 21 está nascendo neste momento. E começa marcado pelo signo do horror da pandemia e do avanço de governos autoritári­os no mundo.

O novo tempo começa conclamand­o as forças democrátic­as a assumirem a responsabi­lidade e se unirem numa grande concertaçã­o para impedir o avanço da tirania. Tanto um golpe de Estado quanto a reeleição de Bolsonaro em 2022, pela radicaliza­ção autoritári­a que se seguirá, representa­rão o fim da democracia.

Não podemos repetir os mesmos erros do passado. Deixemos as flores dos nossos jardins para depois, caso contrário o tufão levará de arrasto avida e as conquistas históricas do povo brasileiro.

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