Folha de S.Paulo

Guerra ao vírus nas ruas de SP mobiliza médicos de conflitos

Habituada a atuar em desastres, organizaçã­o oferece atendiment­o para moradores de rua de SP

- Patrícia Campos Mello

são paulo Em missões dos Médicos Sem Fronteiras, Ana Letícia Nery já tratou de homens e mulheres atingidos por estilhaços de bomba na guerra no Iêmen, em 2016; cuidou de vítimas de bombardeio­s na ofensiva contra o Estado Islâmico em Mossul, no Iraque, em 2017; enfrentou a epidemia de cólera após o ciclone que devastou o norte de Moçambique, em 2019; e atendeu crianças com sarampo e malária na área controlada pelo Boko Haram na Nigéria, também em 2019.

Mas a médica de 31 anos nunca tinha imaginado que teria de cumprir uma missão em seu próprio país, em plena cidade de São Paulo. Desde o fim de março, Ana Letícia passa seus dias entre a cracolândi­a, a praça da Sé, o largo São Francisco, e abrigos para moradores de rua, como o Boracea, na Barra Funda.

Lá, seu trabalho é semelhante ao dos médicos dos MSF que entravam em vilarejos no oeste da África durante a epidemia de ebola: era preciso identifica­r pessoas contaminad­as e levá-las aos hospitais, para que pudessem receber tratamento e não disseminas­sem a doença.

Na quinta-feira (14), Ana Letícia examinava o morador de rua Gabriel Almeida, 49, no albergue Boracea. Com muita dor de garganta, ele tinha saído da região da Luz, onde dorme normalment­e, para procurar ajuda no abrigo.

A médica mediu febre, oxigenação e pressão. Fez algumas perguntas e informou a Gabriel que ele tinha sintomas da Covid-19. Embrulhado em um edredom, tremendo de frio, Gabriel começou a chorar.

“Estou com muito medo de morrer sozinho, na rua”, ele dizia. Gabriel é dependente de crack e álcool e não tem vaga fixa no Boracea, é um dos “pernoites”. Era comum chegar lá, não encontrar vaga, e ter que voltar para a rua.

Ana Letícia explicou que, se ele concordass­e, seria levado ao Pelezão —clube na Lapa que a Prefeitura de São Paulo transformo­u temporaria­mente em abrigo para moradores de rua com suspeita de Covid-19. Lá, médicos do MSF trabalham com assistente­s sociais e outros funcionári­os da prefeitura. “Você não vai ficar na rua, lá tem camas, comida e médicos”, dizia Ana.

Normalment­e, os Médicos Sem Fronteiras atuam em países destruídos por guerras, em colapso, onde pessoas estão morrendo de fome, ou em epidemias que devastam os lugares mais pobres do mundo. Mas, diante do desastre sanitário que se avizinhava, a organizaçã­o montou uma operação de emergência em São Paulo, no final de março.

Antes da pandemia, os MSF tinham entre 10 e 15 profission­ais baseados na cidade, concentrad­os em captação de doações e recrutamen­to para projetos no exterior. Agora, são 63 pessoas envolvidas no enfrentame­nto à Covid-19 em São Paulo, a cidade mais afetada do país. Ana Letícia é a coordenado­ra do projeto.

Os médicos auxiliam a prefeitura, que criou oito novos centros emergencia­is, com funcioname­nto 24 horas, para acolher pessoas em situação de rua, em um total de 680 novas vagas. A Secretaria Municipal de Assistênci­a e Desenvolvi­mento Social também planeja usar hotéis para abrigar moradores de rua.

Segundo pesquisa divulgada pela gestão Bruno Covas (PSDB) no final de janeiro, há 24.344 pessoas em situação de rua na cidade. Dessas, 11.693 estão abrigadas e 12.651 em logradouro­s públicos ou na rua.

Um grande desafio é evitar que os abrigos ou as aglomeraçõ­es nas ruas se tornem focos de contágio pela Covid-19. O Boracea, por exemplo, aloja 1.210 moradores em situação de rua. São acomodados em grandes galpões, e 80 pessoas chegam a dormir em um mesmo “quarto”.

Nessas condições, isolar alguém com suspeita de coronavíru­s é praticamen­te impossível. Mesmo o distanciam­ento entre as camas é inferior aos 2 metros recomendad­os, porque, caso fosse adotada a distância mínima, haveria muito menos vagas.

Por enquanto, segundo Alexsandro de Barros, um dos gerentes do Boracea, houve 2 casos confirmado­s e 10 suspeitos no abrigo. Mas, se houvesse uma alta no número de casos, pacientes teriam de ser isolados em locais improvisad­os, como salas de atividades.

Por isso, foi montado um centro de isolamento no Pelezão. São 106 vagas para casos suspeitos de Covid-19 com sintomas leves. Pessoas com quadro grave são levadas direto para hospitais.

Ao chegar ao Pelezão, os moradores de rua ganham um kit higiene, roupas que vêm das inúmeras doações, e marmitas, da prefeitura. Ninguém é obrigado a ficar os 14 dias da quarentena, mas aqueles que seguem a recomendaç­ão saem de lá com atestado médico de que completou o período de isolamento. Não há testes no Pelezão. As pessoas só fazem exames se pioram e são internadas em algum hospital.

Outro objetivo do centro é assegurar que essas pessoas tenham acompanham­ento médico. No Pelezão, há desde pais de família que perderam o emprego até jovens da cracolândi­a e idosos que moram há anos na rua. Em comum, todos não conseguiri­am fazer isolamento, nem teriam acompanham­ento médico.

Entre os dias 3 e 9 de maio, foram admitidas 41 pessoas no centro. Segundo levantamen­to do MSF, 10% tinham HIV, 9% tinham tuberculos­e, quase 30% eram usuários de crack e cerca de 44% eram dependente­s de álcool.

Uma pessoa que está com sintomas e dorme na rua, na Sé, sem família, sem estrutura, às vezes com problema psiquiátri­co ou usuário de drogas, está totalmente vulnerável, porque é uma doença que piora muito rapidament­e, explica Ana. “Às vezes, eles chegam com sintomas leves, mas, de repente, a doença se agrava, porque muitos já têm tuberculos­e ou outras comorbidad­es”, diz. “Por isso, o centro tem um impacto real na redução de mortalidad­e.”

Quando está na cracolândi­a, Ana Letícia sente que está no limiar de uma guerra. “A diferença é que, em um conflito no Iraque, por exemplo, estou acostumada à rotina de retirar pessoas da ambulância, fazer cirurgias, intubar, e assim tento salvá-las”, conta.

“Na cracolândi­a, estou distribuin­do pitei raspara cachimbos de cr ack,eessaé amaneira de aumentaras chances de as pessoas sobreviver­em”, diz. Os médicos distribuem uma mangueira cortada que funciona como piteira, e os usuários conseguem compartilh­ar o cachimbo de crack com menos chance de se contaminar­em.

“É muito difícil”, ela diz. “Não tem nem água, como mandar lava ramão? Muitas veze seles têm sintomas da Covid, mas não aceitam transferên­cia, porque são usuários de crack.”

A pandemia exacerba os estigmas em relação aos moradores da cracolândi­a.

No dia 9 de maio, o promotor Cassio Roberto Conserino acionou a Justiça pedindo que a prefeitura esvaziasse a cracolândi­a em até dez dias.

Conserino pedia “RETIRADA IMEDIATA DE DROGADITOS DE ESPAÇOS PÚBLICOS (maiúscula do original)”. “Não nos parece razoável limitar o direito dei revir, limitar o exercício comercial, limitara intimidade com devassa em aparelhos celulares de apena suma parcela dos cidadãos de bem sob o pretexto de tutelara vida e a saúde pública e IGNORAR que nestes espaços públicos acontecem toda sorte de crimes contra a saúde pública e, sobretudo, IGNORAR que as pessoas que ali frequentam em condições de irrestrito agrupament­o também são vetores de contágio e profusão da doença”, dizia o promotor em sua ação. A Justiça negou o pedido em 14 de maio.

Para a médica, o mais frustrante é não conseguir vislumbrar o fim da pandemia. “Esta missão não tem data para terminar”, diz. “E o vírus só evidencia as desigualda­des sociais, porque os pacientes não conseguem fazer isolamento e não terão acessoa tratamento quando tudo lotar .”

Caso seus planos originais tivessem se concretiza­do, Ana Letícia estaria, neste momento, viajando por Sri Lanka, Geórgia e Cazaquistã­o com o namorado, que também é médico. Ela ganhou uma bolsa integral de mestrado em saúde pública na prestigiad­a Universida­de Johns Hopkins, nos EUA, eia viajar pelo mundo antes de começar ocurso, em setembro.

Não que ela se queixe sobre a mudança. Não conseguiri­a estar fazendo outra coisa neste momento.

Filha de um médico baiano e uma médica paraibana, Ana Letícia nasceu em São Paulo e cresceu na Paraíba. Voltou para capital paulista aos 17 anos para cursar medicina na Universida­de de São Paulo.

“Na faculdade de medicina, era todo mundo branco, rico e tinha estudado em quatro escolas”, lembra. “O objetivo da maioria dos alunos era um dia ter um consultóri­o no Jardim Europa, trabalhar no Einstein o uno Sírio evirar assistente no Hospital das Clínicas.”

Um dia, um integrante dos Médicos Sem Fronteiras foi até a faculdade para recrutar alunos. Era um pediatra que havia trabalhado na Libéria. “Para mim foi um clique: é isso que quero fazer!”

O trabalho é exaustivo, são muitas as situações difíceis e injustas. No fim do ano passado, a médica tatuou no braço uma frase medieval em latim: “contra vim mortis non crescit salvia in hortis” —contra o poder da morte não cresce nenhuma sálvia na horta.

Não é desanimado­r? Não para Ana Letícia.

“Durante muito tempo, sofri com os limites do meu trabalho. Este ano, entendi os limites do que posso fazer. Evitar o sofrimento, e evitar que alguém sofras oz inho,éo objetivo. Evitaram orteéumab us caim portante, mas, às vezes, impossível.”

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Fotos Eduardo Anizelli/Folhapress Abrigo para moradores de rua com possível infecção pelo coronavíru­s no Pelezão, centro esportivo municipal na zona oeste de SP
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A médica Ana Letícia Nery, dos Médicos Sem Fronteiras, em atendiment­o no albergue municipal Boracea, na Barra Funda

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