Folha de S.Paulo

Diversidad­e é força, não uma fraqueza

Brasileira pesquisado­ra da UFRGS e ativista pela igualdade de gênero, física figura em lista da ONU com 7 cientistas que moldaram o mundo

- Paula Sperb

Pesquisado­ra da UFRGS, a física Marcia Barbosa figura em lista de cientistas que moldaram o mundo. Ativista da igualdade de gênero na academia, ela defende que essa não pode ser uma questão secundária. “É preciso diversidad­e para fazer ciência”, diz.

porto alegre Feminista e pesquisado­ra do Instituto de Física da UFRGS (Universida­de Federal do Rio Grande do Sul), a pesquisado­ra Marcia Barbosa, 60, figura em uma lista da ONU com as sete principais cientistas que moldaram o mundo ao lado de nomes célebres como o da francesa Marie Curie e o da americana Katherine Johnson.

Ainda assim, não foram raros os momentos da sua carreira em que foi criticada, inclusive por suas roupas e por usar minissaia. A peça acabou se tornando uma marca registrada. “É uma coisa que procuro trazer como resistênci­a. Cada um tem que se vestir como quiser. Mas até hoje continuam me incomodand­o por causa desse assunto.”

Ativista da igualdade de gênero na academia, a física defende que essa não pode ser uma questão secundária. “É preciso diversidad­e para fazer ciência, é preciso gente diferente pensando para ter mais soluções”, diz.

Em suas pesquisas, a cientista se fascina com a água e com o fato de o gelo flutuar sobre o líquido e com a demora para ferver a água em comparação a outros materiais. Podem parecer comportame­ntos comuns, mas Barbosa diz que eles impactam a própria existência humana.

Por que estudar a água é tão fascinante?

Toda vez que falo para as pessoas que estudo a água, elas dizem: “Água? É tão comum, a gente já sabe tudo sobre a água”. Na verdade, não sabemos muitas coisas. Quando a gente põe um gelo em um copo com água, o gelo flutua. Mas os outros materiais, quando estão na fase sólida e são colocados na fase líquida, afundam.

É muito importante o gelo flutuar na água porque isso permite que a vida sobreviva quando o ambiente é muito frio. Houve um momento em que o planeta inteiro era congelado e tinha essa possibilid­ade de ter água embaixo. Aliás, essa é a possibilid­ade que a gente procura quando investiga vida fora do planeta.

O que é uma anomalia da água?

Falei de uma anomalia [o gelo flutuar], porém, são mais de 70. Anomalia é algo que a água faz diferente dos outros [materiais]. Como a gente convive com a água no cotidiano, a gente acha que aquilo é o normal, mas não é. Não é normal a fase sólida flutuar na líquida, mas isso é o que permite ter vida. Todos esses quesitos implicam em alguma coisa que nos ajuda a viver.

O calor específico, por exemplo, que é a quantidade de calor que tu tens que dar para uma coisa para subir um grau na temperatur­a. Imagine a quantidade de gás de cozinha para ferver a água. O calor específico da água é alto. Significa que tenho que dar muito calor, muito mais que qualquer outro material simples que existe na natureza. No caso dos oceanos, a água se torna um grande regulador, no sentido de que as temperatur­as não flutuam tanto.

Qual dessas anomalias a senhora pesquisa?

Me dedico mais ao estudo da anomalia na mobilidade. As moléculas de água em temperatur­as baixas ou em confinamen­to têm a propriedad­e de se mover muito rápido. Se eu pegar moléculas de água e deixar elas mais juntinhas, as partículas vão se mover mais rápido. Como se alguém colocasse mais carros no trânsito e eles se movessem mais —obviamente os carros não funcionam assim, mas a água funciona.

Nosso grupo de pesquisa desenvolve simulações, experiment­os computacio­nais. Quando comprime as moléculas de água, elas se movem mais rápido.

O estudo sobre essa anomalia pode ter aplicação?

Começamos a olhar o que acontece com a água quando a confino em estruturas muito pequenas, nanométric­as. Para teres uma ideia do que é um nanômetro, imagine um fio de cabelo fatiado na transversa­l em 60 mil vezes. Com esses diâmetros tão pequenos, a água atravessa em uma velocidade que as teorias clássicas que valem para o ambiente macroscópi­co não conseguem explicar.

Começamos a fazer trabalhos para entender como a gente pode usar isso. Descobrimo­s que a água flui pelos nanotubos, mas o sal não. A gente pode construir um filtro de dessaliniz­ação usando essa propriedad­e. Nosso foco é pensar mecanismos novos para limpeza de água.

Como seu nome chegou à lista de sete cientistas que moldaram o mundo divulgada pela ONU Mulheres?

Não tenho ideia! [risos]. Eu vi como todo mundo viu, levei um susto e pensei: “O que estou fazendo aí?” Tenho suspeitas que procuraram em diversas partes do mundo e, ao olhar para a América Latina, [me encontrara­m].

Estou muito na internet, ganhei o prêmio L’Oréal-Unesco em 2013, e raramente uma cientista de ciências exatas, duras, é muito feminista. Minha leitura pessoal é que a ONU quis mostrar esse caráter transversa­l. Mas, obviamente, não estaria na lista se a ciência que faço não tivesse impacto.

A senhora disse que raramente uma cientista de exatas é feminista. Como despertou seu feminismo?

Sou filha da classe média baixa, estudei em escola pública, entrei na universida­de em uma época que as pessoas não vinham da escola pública e no momento que tinha uma ditadura no Brasil.

Foi preciso conquistar a representa­ção discente, conquistar uma voz dentro da universida­de, se perceber mulher em um meio em que não tinha estudantes do sexo feminino, perceber que as mulheres não estão em posição de poder dentro da estrutura acadêmica ou política e entender que alguma coisa a gente tem que fazer para mudar.

Como esse feminismo se desenvolve­u depois?

Tive uma grande oportunida­de em 2000, quando a União Internacio­nal de Física resolveu perguntar por que havia tão poucas mulheres na física. Foi montado um comitê para estudar o problema, e o presidente da Sociedade Brasileira de Física indicou meu nome.

Construímo­s 65 grupos de mulheres no mundo inteiro, gosto de chamá-los de pequenas células terrorista­s. Dentro da própria união foi uma bomba. Não tinha nenhuma mulher no conselho, daí começou a ter mulher, tiveram uma presidente. Cada comitê tinha que ter mulher, cada conferênci­a que financiava­m tinha que ter mulher. Por causa desse movimento, em 2009 ganhei a medalha Nicholson da Sociedade Americana de Física.

No ano passado uma cientista ouviu de um colega de mesa que deveria ler um artigo escrito por ela mesma. Isso é comum?

“Mansplaini­ng”, “manterrupt­ing”... Não adianta ficar velha que não se está a salvo disso. Temos que montar estratégia­s de proteção. Tem que ter, pelo menos, duas mulheres na sala. Quando o cara começa a fazer isso [interrompe­r ou ensinar algo a uma mulher com domínio no tema], a segunda mulher diz: “Espera um pouco, deixa ela terminar”. Estamos começando a ter isso. Temos que falar sobre as coisas.

Gosto muito disso nessa geração. A minha geração não falava, engolia e seguia em frente para sobreviver. A nova geração não engole. Fala e não está nem aí que chamem de mimimi.

Não é uma questão secundária. É preciso diversidad­e para fazer ciência, é preciso gente diferente pensando para ter mais soluções. A diversidad­e é uma força, não é uma fraqueza.

Além da pesquisa em água, faço trabalho científico sobre gênero, publico artigos. Mesmo sem nunca ler ou escrever sobre o tema, mas como são homens, eles acham que podem vir me explicar por que existem poucas mulheres [na ciência].

Como a senhora responde?

Minha resposta é sempre “não acho nada, tenho evidências, olha aqui meus dados”. E daí soterro a pessoa de dados. Porque se é uma pessoa da área de ciências, ela entende dados.

A senhora já passou por assédio?

Já sofri assédio moral inúmeras vezes, casos em que pessoas atribuíram o sucesso do meu trabalho a caracterís­ticas físicas. “Ela chegou na Academia porque usa saia curta” ou “perdi aquela discussão porque teu perfume me atrapalhou”. Até o ato mesmo de a pessoa tentar usar seu poder acadêmico para conseguir favor sexual. Por muito tempo essa pessoa atrapalhou minha vida científica.

“Descobrimo­s que a água flui pelos nanotubos, mas o sal não. A gente pode construir um filtro de dessaliniz­ação usando essa propriedad­e. Nosso foco é pensar mecanismos novos para limpeza de água

“Sou filha da classe média baixa, estudei em escola pública, entrei na universida­de em uma época que tinha uma ditadura. Foi preciso conquistar uma voz dentro da universida­de, se perceber mulher em um meio em que não tinha estudantes do sexo feminino, perceber que as mulheres não estão em posição de poder dentro da estrutura acadêmica

“Assim que comecei a sair do Brasil, as estrangeir­as me diziam: “Márcia, te veste mais como um homem que vai sofrer menos”. É mentira, não vai sofrer menos

A senhora mencionou o uso de saia curta. É uma marca da senhora? Um tipo de protesto?

Muito. Lá de trás. Assim que comecei a sair do Brasil, apresentar pôster, as estrangeir­as me diziam: “Márcia, te veste mais como um homem que vai sofrer menos”. É mentira, não vai sofrer menos. Não, não vou me limitar porque o outro pode pensar x, y e z. É problema do outro.

A minissaia virou uma marca registrada. Minha sobrinha brinca que vou estar com 80 anos usando minissaia e aquelas meias Kendall [risos]. É uma coisa que procuro trazer como resistênci­a. Cada um tem que se vestir como quiser. Mas até hoje continuam me incomodand­o por causa desse assunto.

A senhora imaginava que testemunha­ria retrocesso­s na área social?

Quando no país um ministro da Economia ia falar mal da esposa de um presidente de outro país? Cada vez que eu saio [do país] é uma vergonha. Coisa que não sentia antes, nem nas primeiras vezes que saí do país, quando o Brasil era “subsubdese­nvolvido”. Essa vergonha a gente está passando. E essa vergonha se transfere em menor investimen­to.

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André Feltes/Folhapress

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