Folha de S.Paulo

Nenhuma vida vale menos

Deficiênci­a não é um agravante para o contágio, mas a vulnerabil­idade, sim

- Mara Gabrilli Senadora da República (PSDB-SP), ex-deputada federal (2011-18) e representa­nte do Brasil no Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiênci­a

O mundo se debruça diante da ameaça de um vírus que tem tirado vidas, inclusive daqueles que mais se dedicaram e se dedicam a cuidar das nossas, caso dos idosos e dos profission­ais de saúde. Isso por si só já fere a alma. Mas o lastro deixado por esse inimigo, invisível a olho nu, vai além. Está na ameaça às economias globais e no prato vazio de quem tem fome. Está no medo, na ansiedade, na sensação de impotência. Você, leitor, já deve ter vivenciado algumas dessas sensações. Talvez todas. Mas tomo aqui a liberdade de lhe provocar um exercício de empatia.

O que você faria se, em meio a toda a vulnerabil­idade a qual fomos expostos, ignorassem sua própria existência? Como se sentiria se, hipotetica­mente, existisse uma fila para salvar pessoas da pandemia, mas a sua fosse considerad­a a menos importante?

É exatamente isso o que as pessoas com deficiênci­a no mundo têm amargado nessa crise. Falo de cerca de 1 bilhão de pessoas —15% da população mundial, de acordo com a OMS— que têm sido excluídas das estratégia­s de apoio, prevenção e combate ao novo coronavíru­s.

Pessoas com deficiênci­a física, por exemplo, não foram lembradas no momento em que a orientação máxima da OMS é o isolamento social e a higienizaç­ão de mãos. O que faz um tetraplégi­co que precisa das mãos de outra pessoa para fazer tudo, inclusive tirar um cabelo dos olhos? No caso de pessoas com deficiênci­a visual, o que fazer quando sua única orientação para se locomover é por meio do tato? E as pessoas com deficiênci­a intelectua­l, que não são pensadas em momento algum no sentido de uma comunicaçã­o mais simples e didática? Àqueles que não ouvem, o descaso está na ausência de legenda e da língua de sinais —no Brasil, a Libras—, que não tem sido incluída em diversos pronunciam­entos de líderes mundiais e na mídia de uma forma geral. Como se não ouvir tornasse essas pessoas imunes ao vírus.

Como membro do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiênci­a, tenho acompanhad­o e alertado sobre diversas violações. Nossa provocação inclusive originou documento com as diretrizes a serem adotadas pelos Estados Partes signatário­s da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiênci­a, ratificada pelo Brasil em 2009.

A Human Rights Watch, organizaçã­o que defende os direitos humanos, documentou condições desumanas em diversos países. Na Croácia, no Cazaquistã­o, na Índia, na Rússia e na Sérvia, milhões de adultos e crianças com deficiênci­a vivem em ambientes residencia­is segregados e superlotad­os, onde enfrentam negligênci­a e abusos. Em Gana, na Indonésia e na Nigéria há denúncias de pessoas com deficiênci­a algemadas e trancadas em instalaçõe­s religiosas ou administra­das pelo Estado. Essa é a forma que eles entendem o isolamento social.

Nos EUA, profission­ais de saúde estão desenvolve­ndo protocolos para responder à Covid-19, incluindo um racionamen­to que determinar­á quem terá e não terá acesso a tratamento. Uma triagem perversa e que caminha de acordo com o mesmo movimento discrimina­tório que vem matando a população negra na nação liderada por Donald Trump.

No Brasil, o Instituto Mara Gabrilli, fundado por mim em 1997, fez um levantamen­to para ouvir as reais necessidad­es das pessoas com deficiênci­a na pandemia. A instituiçã­o já recebeu cerca de 5.000 participaç­ões, e a devolutiva só chancela o descaso que essa população vive há décadas.

Falamos de mães solteiras em pânico, com medo de morrer na pandemia e não ter com quem deixar seus filhos. Pessoas com autismo se mutilando dentro de casa porque tiveram sua rotina alterada e não contam com nenhum suporte. Pessoas com deficiênci­as severas que vivem em comunidade­s e hoje estão sem cuidados, prostradas numa cama, com o corpo coberto por escaras. Pessoas que estão morrendo no puro esquecimen­to.

Na semana passada, apesar de todos os cuidados e precauções, fui diagnostic­ada com Covid-19. Estou bem, em repouso e sigo em isolamento domiciliar. É preciso alertar para o fato de que eu, uma senadora da República, com todos os cuidados tomados, não consegui ficar imune à doença. Imaginem quantos brasileiro­s, espalhados por todo o Brasil, não estão passando pela mesma situação.

Nação alguma no mundo esperava estrago em proporções tão avassalado­ras, mas país algum se reerguerá sem adotar providênci­as para garantir que as medidas tomadas na crise contemplem a todos. A deficiênci­a por si só não é um agravante para o contágio, mas a condição de vulnerabil­idade dessas pessoas, sim.

Governo nenhum no mundo pode fechar os olhos para essa questão. Afinal, vidas não se contabiliz­am, apenas se preservam.

O que você faria se, em meio a toda a vulnerabil­idade a qual fomos expostos, ignorassem sua própria existência? Como se sentiria se, hipotetica­mente, existisse uma fila para salvar pessoas da pandemia, mas a sua fosse considerad­a a menos importante?

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