Folha de S.Paulo

Não foi reunião, foi flagrante

Moro falou a verdade; Bolsonaro disse claramente que queria intervir na PF

- Celso Rocha de Barros Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universida­de de Oxford (Inglaterra)

O vídeo da reunião presidenci­al de 22 de abril é um flagrante.

Sergio Moro falou a verdade. Bolsonaro disse claramente que queria intervir na Polícia Federal na página 25 da transcriçã­o da reunião: começa com “eu tenho o poder e vou interferir em todos os ministério­s, sem exceção”, e termina com “pô, eu tenho a PF que não me dá informaçõe­s”.

Nesse trecho, só duas áreas do governo são citadas: a economia, em que Bolsonaro diz que nunca teve problemas, e “a PF”. Supondo que Bolsonaro não estivesse indignado com Guedes por nunca lhe ter causado problemas, estava anunciando intervençã­o na Polícia Federal. A intervençã­o, como se sabe, aconteceu: o diretor da Polícia Federal caiu logo depois, o que ocasionou a saída de Moro do governo.

A defesa de Bolsonaro argumenta que a intenção era mexer na segurança pessoal do presidente. É mentira. Matéria de Andréia Sadi no Jornal Nacional mostrou que, muito pelo contrário, o chefe da segurança pessoal do presidente acabara de ser promovido. E “os amigos” não são protegidos pela segurança presidenci­al. Ah, os amigos de Jair.

Grande parte da reunião foi uma tentativa de intimidar Moro. Na página 56 da transcriçã­o começa o singelo soneto “eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meus”, que termina com “se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final!”.

Para quem duvida que o recado fosse para Moro, logo depois, na página 58, o endereço de entrega está lá: quem não concordar com as bandeiras do governo que espere 2022 para ser ministro de Álvaro Dias, Alckmin, Haddad ou Lula. Dias teve votação baixa em 2018. A única coisa que justifica sua inclusão liderando essa lista é sua tentativa de se apresentar como candidato de Moro (e o boato de que Moro teria votado em Dias no primeiro turno). No mesmo trecho, Bolsonaro manifesta seu ciúme de ministros que são elogiados por blogs como “O Antagonist­a”, críticos de Bolsonaro mas notórios porta-vozes de Moro.

Enfim, resta claro que o recado sobre intervir nos ministério­s era para Moro, que não mandava na segurança pessoal do presidente, mas mandava na Polícia Federal. A “Segurança” a que Bolsonaro se referia não era a sua, mas a “Pública” do nome do ministério de Moro (Justiça e Segurança Pública).

Não sei se alguém ainda se importa, mas é abuso de poder, aparelhame­nto do Estado, tentativa de fugir da polícia e crime de responsabi­lidade.

E há o fascismo, muito fascismo: Damares Alves diz, na página 47, que governador­es que implementa­m o isolamento social serão presos. Weintraub propôs a prisão dos ministros do STF na página 54. Bolsonaro propõe armar a população (sabemos que não toda, certo?) para resistir aos prefeitos na página 57.

Leia o resto da coluna e responda: esse autoritari­smo todo seria para combater corrupção? Pois é, nunca é.

E, numa reunião com tantos crimes e tanto golpismo, o mais repulsivo é que ninguém se dispôs a trabalhar quinze minutos para salvar brasileiro­s da epidemia, a pelo menos sair da frente de quem está trabalhand­o, a pelo menos não prender, sabotar ou atirar em quem estiver trabalhand­o.

Foi uma reunião de gente ruim que desperdiça tempo, vidas e esperança dos brasileiro­s.

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