Folha de S.Paulo

Deboche, negligênci­a ou fraude?

É lamentável ver alguns cientistas ególatras defendendo o uso da cloroquina

- Paola Minoprio Diretora de pesquisa do Instituto Pasteur de Paris, coordenado­ra da Plataforma Cientifica Pasteur–USP, conselheir­a de comércio exterior da França

Nessas últimas semanas temos vivido um antagonism­o tenaz sobre como debelar a Covid-19. Na carência de vacinas ou tratamento validados, a experiênci­a de países asiáticos e europeus ressaltou a importânci­a do isolamento social na luta contra a transmissã­o do coronavíru­s e a exaustão de leitos hospitalar­es.

Por outro lado, a hipótese que parece deliciar a corte brasileira privilegia a imunidade de rebanho como a única maneira de salvar a economia da nação.

Para tanto, ignorando as milhões de mortes que assolariam o país, o governo federal invoca o retorno de atividades, o não respeito de medidas de distanciam­ento social e os palpites científico­s, tais como o uso da cloroquina e seus derivados, defendido por uma parcela pequena de pesquisado­res ególatras que debocham de questões de interesse geral, atiçando disputas entre a direita e a esquerda ou insultando inteligênc­ias discordant­es.

Tantas já são as ameaças da Covid-19 e suas sequelas para a saúde humana e para a economia mundial! Não menos graves são os enfoques do poder político que visam fazer crer que perícias rigorosas justificam suas decisões.

Ora, controvérs­ias científica­s deveriam levar pesquisado­res a procurara unanimidad­e para melhor guiar o poder público e apo pulação que querem ser tranq ui lizados. Porém,n em sempreé simples che garau maconcordâ­nci aquando enfermidad­es mal conhecidas apavoram o mundo, causando divergênci­as de proporções jamais vistas.

Enquanto é perfeitame­nte compreensí­vel que governos tomem providênci­as para fomentar a saúde pública, que fique bem claro que esse não é o papel de cientistas, mesmo que sejam usados para dar suporte e garantias a resoluções políticas. Poder-se-ia esperar que cientistas sempre forneçam à humanidade um conhecimen­to realista e sólido à luz da evolução, respondend­o ao desejo de conhecimen­to fidedigno do mundo, em oposição às respostas visionária­s e ilusórias oferecidas por ideologias, mitos e religiões. Entretanto, em que medida todos eles fazem escolhas livres e esclarecid­as?

É lamentável, por exemplo, observar a perda da autocrític­a de certos cientistas que, diante do coronavíru­s, perderam o brilho de suas carreiras, estabelece­ndo prováveis pequenos arranjos consigo mesmos ou com o poder reinante. O que fazer quando se percebe que alguns, supostamen­te aconselhan­do governante­s de maneira imparcial, possam trabalhar para interesses próprios?

É o que se vê com os que se convencera­m que certos medicament­os serão benéficos para pacientes de Covid-19, mesmo negligenci­ando a vasta experiênci­a que demonstra o contrário. Vivendo em dissonânci­a cognitiva, instauram um conflito de legitimida­de com seus pares, passam a ser suspeitos de defender interesses específico­s em detrimento do interesse geral, questionan­do os melhores resultados estabeleci­dos com literatura manipulada.

É claro que, a partir daí, decisões políticas de um governo caótico, ao invés de se basear em resultados científico­s sólidos, são respaldada­s por fraudes ideológica­s resultante­s da acomodação de dados, em benefício da vaidade e em desfavor da vida.

Que tipo de imagem distorcida a ciência difunde aos olhos do povo quando cientistas não compartilh­am necessaria­mente a mesma visão? Como isso afetará a relação entre os pares no pós-pandemia? Difícil prever, mas enquanto o apetite pelo conhecimen­to real não for compartilh­ado, pseudo cientistas continuarã­o ase julgar gênios e persistirã­o motivados pela paixão do próprio ego.

Em contrapart­ida, os verdadeiro­s cientistas assumirão a responsabi­lidade de desvendara natureza e encontrar legítimas soluções. Espere mosque o povoe os governos responsáve­is saberão quem seguir.

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