Após gripe espanhola, Rio teve Carnaval da revanche contra a dor
Celebração de 1919, conhecida como a maior de todos os tempos, era uma festa que tentava ser alegre para os tristes
SÃO PAULO “Carnaval vai, Carnaval vem, e eu não consigo esquecer o Carnaval que não vivi, não era nem nascido, o Carnaval de 1919”, escreveu Carlos Heitor Cony (1926-2018), na Folha, em 1996. A nostalgia lhe fora transmitida pelo amigo Mario Filho (1908-1966), que demonstrava grande entusiasmo por aquela festa.
“Herdei do Mario essa obsessão pelo Carnaval de 1919, a que não assisti, como não assisti à batalha de Salamina, à morte de César e à invasão otomana na península Ibérica. Não pude aproveitá-lo. Mesmo assim tenho saudade dele”, explicou Cony, em uma das várias ocasiões em que revisitou o tema.
Em outra coluna, publicada em 2000, questionou: o Carnaval é uma festa alegre ou triste? E apresentou a conclusão que faz o Carnaval de 1919 no Rio de Janeiro ser considerado o maior de todos os tempos: “acho que é uma festa que tenta ser alegre para os tristes”.
A farra de 101 anos atrás foi realizada praticamente sobre os escombros deixados pela devastadora gripe espanhola.
Em sua chegada ao Brasil, a pandemia que matou em torno de 50 milhões no mundo foi particularmente cruel com o Rio, onde morreram ao menos 15 mil pessoas. Entre outubro e novembro de 1918, como descreveu a Gazeta de Notícias, a velha capital federal virou “um vasto hospital”.
Cadáveres eram espalhados pelas calçada e depois recolhidos por caminhões como sacos de lixo. Nelson Rodrigues (1912-1980), que tinha apenas seis anos na época, disse mais de quatro décadas depois: “Foi uma tragédia, amigos, uma tragédia. Houve na cidade uma enchente de caixões. Pergunto: ‘Quem não morreu na espanhola?”.
Quem não morreu viu a espanhola partir no fim de 1918, depois que a população criou anticorpos contra aquela versão do vírus H1N1.
Após dois meses de tentativas de volta à normalidade, explodiu em 1º de março o Carnaval da ressurreição ou, como definiu o escritor Ruy Castro, o Carnaval da revanche, “a grande desforra contra a peste que dizimara a cidade”.
O fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) também contribuiu para aquele clima de vingança contra a dor.
“Quando acabou a guerra, teve uma liberação de energia, e o Carnaval se consumou de uma forma estrondosa, como se fossem várias tensões represadas estourando”, diz o jornalista e pesquisador David Butter, que está preparando um livro sobre a folia pós-pandemia.
Na época já existiam blocos, cordões, ranchos, corsos e as chamadas grandes sociedades, que eram organizações gigantes precursoras das atuais escolas de samba que apresentavam carros alegóricos decorados por artistas como Di Cavalcanti e J. Carlos.
As músicas daquele ano tratavam a gripe com escárnio. “Quem não morreu da espanhola/quem dela pôde escapar/não dá mais tratos à bola/toca a rir, toca a brincar”, diziam os versos assinados por Pierrot, nome usado pelo poeta Bastos Tigre.
Os desfiles das grandes sociedades também escolheram a doença como tema. Os Fenianos exibiram um carro com caveiras que representavam a “dançarina espanhola”. Já os Democráticos apresentaram uma xícara com a inscrição “chá da meia-noite”, referência à bebida que, dizia-se, era servida aos desenganados para acelerar o adeus.
A gripe, como se sabe, só era espanhola no nome, já que foi a imprensa da Espanha a primeira a noticiá-la sem censura. Nada disso impediu que a fantasia de espanhola, como a dançarina que aparecia nas charges dos jornais, acabasse se tornando moda na cidade.
Não importasse a roupa, nas grandes sociedades ou em celebrações mais pobres —como a registrada na praça Onze, centro popular da folia carioca—, havia uma onda erótica decorrente da tragédia.
“Começou o Carnaval e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, espectrais”, escreveu Nelson Rodrigues, em 1967. “A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas.”
Uma tática comum usada pelos homens na sedução era beijar uma ponta da serpentina e atirá-la para uma mulher do outro lado da pista.
Era ilustrativa do momento a pornográfica “Marcha do Racha-Lenha”, na qual os homens diziam: “Na minha casa não se racha lenha”. “Na minha racha, na minha racha”, respondiam as mulheres, que acrescentavam: “Na minha casa não se pica fumo”. O leitor deve imaginar a réplica.
Aquele ano marcou ainda o primeiro desfile do Cordão da Bola Preta, fundado em 31 de dezembro de 1918. Foi também ali que o Rio conheceu o Bloco do Eu Sozinho: o jornalista Júlio Silva tocou sua corneta sem aceitar adesões, em uma brincadeira que repetiria por mais 53 Carnavais.
Temendo o recrudescimento do contágio, o inspetor de saúde pública Theophilo Torres chegou a fazer um pedido, em vão, para que não houvesse aglomerações.
Uma possível volta da gripe mortífera era mais um motivo para se entregar à patuscada como se não houvesse amanhã, porque talvez não houvesse mesmo. O comportamento não era totalmente inédito: na Europa devastada pela “peste negra”, no século 14, também houve festa.
“Ao compararmos as epidemias, encontramos semelhanças nos relatos sobre a ocorrência de peste na Europa e da gripe espanhola no Brasil em 1918. A mesma perda dos laços comunitários, a ruptura das normas sociais, a fuga, o medo e a surpreendente alegria”, escreveu o historiador Ricardo Augusto dos Santos no artigo “O Carnaval, a peste e a ‘espanhola’”.
“As pessoas viram a morte. E isso deixa marcas culturais”, diz David Butter, lembrando que o tradicional Carnaval de Veneza, celebrado desde o século 11, é até hoje influenciado pela peste negra. “Veneza foi atingida 30 vezes pela peste. E a máscara mais famosa é a do médico da peste e evirou a cara da cidade.”
Hoje o mundo vive uma nova pandemia e, com parte considerável das pessoas trancada em casa, há novamente uma energia represada. Um evento criado no Facebook com o título “Carnaval de novo quando tudo isso passar” já reúne 78 mil interessados.
Só não se sabe ainda quando o encontro será possível. Mesmo o Carnaval previsto no calendário de 2021 está em risco. Quando ele for realizado, se for realizado, a atual campeã no concurso das escolas de samba do Rio de Janeiro vai lembrar a folia de 1919.
O enredo da Viradouro é “Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”, trecho da marchinha que embalou a grande sociedade dos Democráticos na festa pós-gripe espanhola. A agremiação de Niterói pretende recordar o deleite do século passado e revivê-lo no próximo ano.
“Ninguém como o brasileiro tem esse dom maior de transformar o luto que passou em alegria”, afirma Tarcisio Zanon, um dos carnavalescos da escola. “Esse enredo é uma mensagem de esperança. O Carnaval é, sim, um grande remédio.”
Ruy Castro diz que adoraria que o Brasil tivesse agora uma “década extraordinária de modernidades”, como a vivida no Rio pós-espanhola, mas “não exigiria tanto”.
“Eu me contentaria com a possibilidade de apenas sair à rua, abraçar os amigos e sentir o cheiro do mar. Não haveria nada mais moderno do que simplesmente viver.”