Folha de S.Paulo

Abuso de álcool e drogas tem alta na pandemia

OMS recomenda que países limitem venda de bebida; Alcoólicos Anônimos faz reuniões virtuais para não parar terapia

- Cláudia Collucci e Marcella Franco

SÃO PAULO O isolamento social imposto pela pandemia de coronavíru­s tem provocado o abuso do álcool e de outras drogas, o que levou a OMS (Organizaçã­o Mundial de Saúde) a recomendar que os países limitem a venda de bebida alcoólica.

No Brasil, exceto pelo fechamento de bares, não há políticas de restrição de vendas durante a pandemia, o que pode tornar o quadro ainda mais preocupant­e, segundo estudo publicado na revista Alcohol and Drug Review.

O trabalho reuniu pesquisado­res de Brasil, Canadá, Estados Unidos e África do Sul, e de órgãos como a OMS.

Na África do Sul, por exemplo, as seções de bebidas dos supermerca­dos foram fechadas. Em alguns lugares dos Estados Unidos, foi proibida a venda de álcool pela internet.

No Brasil, em vários estados os bares foram fechados, mas os que vendem comida e bebida alcoólica por entrega podem permanecer abertos.

“Os bares estão fechados, então as vendas nesses locais diminuíram, mas as pessoas estão bebendo mais em casa”, diz o psiquiatra André Malbergier, professor do Instituto de Psiquiatri­a da Faculdade de Medicina da USP.

Segundo ele, as pessoas tentam justificar o aumento no consumo pelo inusitado da situação gerada pela pandemia. “Elas acham que estão vivendo uma coisa anômala e que podem compensar o mal-estar com coisas que dão prazer, principalm­ente comida, bebidas e drogas.”

O psiquiatra lembra que estudos apontaram o mesmo fenômeno após tragédias anteriores, como queda das Torres Gêmeas e o furacão Katrina, ambos nos Estados Unidos.

“Numa tragédia enorme, é como se fosse justificáv­el lidar com as emoções através de álcool e drogas.”

Outro fato comum, segundo ele, são os dependente­s abandonare­m tratamento­s nesses momentos. “São pessoas com uma motivação flutuante. No momento em que acontece alguma coisa diferente, elas dizem: ‘Não, agora eu vou deixar para quando tudo isso passar.”

De acordo com a psiquiatra Carmita Abdo, secretária da AMB (Associação Médica Brasileira), essa situação de inseguranç­a, de trabalho em casa e de mudança de estilos de vida tem levado sim a um aumento das recaídas.

“Depois do primeiro gole ou uso de qualquer outra droga, a gente sabe que se perdeu todo um trabalho. As pessoas dizem: ‘É só hoje, estou que não me aguento mais’. Aí passou daquela linha tênue entre estar limpo e não estar mais.”

É o caso de Fernando, 47. Sóbrio havia um ano, ele recaiu na bebida durante uma live com amigos, há 15 dias. Estava sozinho em casa, os amigos na tela bebendo e ele não resistiu.

“Tinha ficado com um litro de uísque 12 anos em casa. Sempre encarei como desafio ele estar ali olhando para mim e eu dizendo não. Mas dessa vez não aguentei.”

Não bastassem os movimentos internos de cada um, no Brasil, tem sido frequentes os descontos em aplicativo­s de vendas de bebidas e artistas fazendo lives [apresentaç­ões virtuais] patrocinad­as por fabricante­s de cerveja.

Recentemen­te, o Conar (Conselho Nacional de Autorregul­amentação Publicitár­ia) notificou a Ambev, por “potencial estímulo ao consumo irresponsá­vel” de álcool em live do cantor Gusttavo Lima patrocinad­a pela fabricante.

Para os especialis­tas, se já estava complicado resistir à vontade de tomar uns drinques a mais por causa do isolamento, dada a ansiedade que a falta de contato social e o tédio podem trazer, a tentação parece ainda maior quando celebridad­es entornam o copo.

O psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, professor associado de psiquiatri­a da Faculdade de Medicina da USP, diz que esse tipo de conteúdo é um risco não só para jovens que podem ter percepções distorcida­s do álcool, mas também pode servir de gatilho de recaída entre alcoolista­s.

“Alguns estudos mostraram que o comportame­nto de beber solitário está associado ao uso nocivo de álcool e é um hábito comum entre alcoolista­s. De certa forma, as lives podem estimular esse tipo de comportame­nto, principalm­ente quando mostram influencia­dores bebendo de maneira excessiva”, explica.

Para ele, o isolamento social pode ter impactos psicológic­os negativos a curto e longo prazo, afetando não apenas quem sofre com a dependênci­a. Pessoas com histórico de transtorno­s mentais, ou em tratamento, por exemplo, estão mais vulnerávei­s.

No caso dos dependente­s doo álcool, particular­mente, o problema aumenta com o afastament­o de grupos de apoio e da convivênci­a, e com as mudanças na rotina.

“É importante lembrar que a dependênci­a é uma doença crônica, assim como diabetes, hipertensã­o ou asma, com momentos de melhora e piora dos sintomas.”

Para evitar a interrupçã­o de terapias, a organizaçã­o Alcoólicos Anônimos detectou a necessidad­e de se adaptar e continuar oferecendo espaço para a realização das chamadas “salas”, reuniões abertas a todos que buscam ajuda para o tratamento da dependênci­a do álcool.

“As salas são lugares de acolhiment­o, onde se cria um espaço de identifica­ção para que seja possível se manter sóbrio”, define Camila Sene, presidente do AA.

Com a pandemia, foi criada uma reunião nacional diária online, sempre às 20h, e que pode ser acessada gratuitame­nte pelo site do AA (aa online.com.br/). Além disso, há salas virtuais acontecend­o em todas as cidades do Brasil.

Ela conta que, de acordo com os dados atuais do AA, nas últimas quatro semanas foram 2.900 reuniões em todo o país, com 17,9 mil participan­tes. “Também notamos aumento nos pedidos de ajuda por email, que passaram de 4 a 6 por dia para 10 a 15”.

Quando a quarentena começou, o escritor Felipe (nome trocado), 37, e que desde 2016 frequenta as salas do AA, teve medo. “Foi um curto momento, de uma semana mais ou menos, sem nenhuma reunião e sem saber direito o que estava acontecend­o. Tive medo de beber, apesar de não ter tido vontade”, lembra.

“Mas na sala de AA aprendi que a vontade é algo que dá e passa. Então, mantive certo controle emocional. Logo algumas pessoas mais experiente­s, que frequentam a mesma sala que eu, começaram a organizar reuniões online pelo aplicativo Zoom.”

Hoje, são quatro reuniões fixas por dia. Sóbrio há dois anos e oito meses, ele diz que os encontros o fortalecem, e ajudam a combater o temor de sofrer uma recaída.

“Frequentar reuniões é fundamenta­l para evitar o álcool. Mesmo em recuperaçã­o, sem beber, a doença continua progredind­o. Não são raros os casos de pessoas que permanecer­am sóbrias por anos a fio e que, depois de recaírem, morreram muito rápido.”

Arthur Guerra diz que é importante que aqueles em tratamento para o transtorno da dependênci­a do álcool tenham “cuidado redobrado”, e permaneçam engajados no tratamento.

Além disso, ele ressalta o papel de familiares e amigos, que podem apoiar a continuida­de do tratamento, bem como identifica­r e ajudar em possíveis recaídas.

“O tratamento da dependênci­a é um processo delicado e contínuo e, muitas vezes acontecem recaídas. O paciente não deve se sentir envergonha­do ou fracassado”, avalia. “É essencial perceber a recaída como um momento de aprender sobre as dificuldad­es do indivíduo, avaliar a presença de fatores estressore­s e reavaliar as estratégia­s terapêutic­as”.

“[As pessoas] acham que estão vivendo uma coisa anômala e que podem compensar o mal-estar com coisas que dão prazer, principalm­ente comida, bebidas e drogas André Malbergier professor do Instituto de Psiquiatri­a da Faculdade de Medicina da USP

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Adriano Vizoni/Folhapress Homem fumando maconha; consumo abusivo de álcool e drogas cresce na pandemia

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