Folha de S.Paulo

Testes de 6.000 óbitos suspeitos são descartado­s por falha de coleta

Maioria dos exames em março de mortos por SRAG sem causa específica foram feitos fora dos padrões ideais

- Flávia Faria

são paulo Problemas no processame­nto, coleta e análise de testes podem ter tirado das estatístic­as cerca de 6.000 mortes por Covid-19 no Brasil.

São óbitos que extrapolam a média histórica de mortes por Síndrome Respiratór­ia Aguda Grave (SRAG) sem causa definida entre 1º de março e 2 de maio. Essas pessoas chegaram a ser testadas para verificar a presença do novo coronavíru­s, tiveram resultado negativo, mas na maioria dos casos os testes foram feitos fora dos padrões ideais.

Ao menos 61% (3.713) desses pacientes tiveram amostras coletadas fora do período em que o teste utilizado (o RT-PCR) é mais sensível à detecção do novo coronavíru­s.

Há ainda outros fatores que podem prejudicar a análise e levar a falsos negativos, de acordo com especialis­tas consultado­s pela reportagem, e que são reconhecid­os por secretaria­s de Saúde.

Como mostrou a Folha, até o dia 2 de maio 9.805 pessoas morreram pela Covid-19 no país, segundo dados do Sistema de Vigilância da SRAG, do Ministério da Saúde.

O número difere do divulgado à época (6.724) porque a pasta informa as mortes de acordo com a data em que são notificada­s pelas secretaria­s de Saúde, e não quando ocorreram de fato. Atrasos no processo de notificaçã­o geram esse descompass­o na contabilid­ade.

Além disso, outras 6.339 mortes por SRAG sem causa definida ultrapassa­m a média histórica, ou seja, destoam do padrão de óbitos observados no mesmo período em outros anos.

Esse número excedente provavelme­nte se trata de mortos pelo novo coronavíru­s, visto que a doença é o que há de novo no cenário.

Por que, então, esses óbitos não foram registrado­s como Covid-19? A resposta pode estar nos testes e nas condições em que são feitos.

A amostra para o teste RTPCR, o mais preciso e indicado pela OMS para a correta realização do diagnóstic­o, precisa ser coletada em certas condições para que a análise não seja prejudicad­a.

O ideal é que a coleta do material das vias aéreas do paciente, com o swab (espécie de cotonete grande), seja feita entre o 3º e o 7º dia desde que os sintomas apareceram.

Não é uma regra absoluta, mas uma indicação do período em que a carga viral costuma ser maior e mais facilmente detectável na secreção do nariz e da faringe.

A partir daí, se a doença se agrava, o vírus se aloja nas vias aéreas inferiores, e a coleta idealmente deveria ser feita de outra forma —mas são métodos mais complexos e nem sempre disponívei­s.

Em 61% dos casos analisados pela reportagem, a coleta foi feita ou muito cedo ou, quando mais tarde, com material das narinas e garganta (o que diminui a confiança no diagnóstic­o para Covid-19).

Isso aconteceu com maior frequência em São Paulo (2.033 óbitos), Minas Gerais (403) e Paraná (344).

Conseguir realizar a coleta no período ideal, contudo, pode não ser tão simples, especialme­nte nos casos mais graves. Em geral a doença demora alguns dias para se agravar, levando o paciente a procurar uma unidade de saúde já após do período ideal para o teste.

“Pela evolução natural, a piora costuma acontecer entre o 6º e o 10º dia, o que coincide com o momento em que começa a cair a sensibilid­ade do PCR para amostras de nariz e de garganta. Se você fizer só o swab, pode vir negativo”, diz a infectolog­ista do Grupo Fleury Carolina Lázari.

Boa parte dos pacientes, portanto, já chega ao hospital fora da janela em que o teste costuma ser mais sensível.

“O ideal é testar mesmo assim. Dá uma oportunida­de a mais de descobrir a doença, e há casos em que conseguimo­s identifica­r mesmo em estágio avançado”, diz Alessandro Farias, professor do Instituto de Biologia da Unicamp e coordenado­r de uma força-tarefa de testes para Covid-19.

“Mas, por mais que o RT-PCR seja sensível, o negativo não diz que você não tenha o vírus. Às vezes o vírus só não está nas vias aéreas”, completa.

Mesmo quando é possível recolher a amostra no período ideal, há uma série de outros fatores que podem prejudicar a qualidade da análise e que, segundo os especialis­tas consultado­s, são observados com relativa frequência.

O principal é a forma com que o profission­al coleta a secreção com swab, método mais comum. Muitas equipes de saúde fizeram isso pela primeira vez e nem sempre com treinament­o adequado. Secretaria­s reconhecem o problema e têm intensific­ado a capacitaçã­o dos funcionári­os.

Há ainda questões quanto ao armazename­nto das amostras (que precisam ser refrigerad­as), transporte, tempo até que sejam analisadas e qualidade dos reagentes utilizados nos testes, de acordo Ilma Brum da Silva, diretora do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da Universida­de Federal do Rio Grande do Sul.

Em nota, o Ministério da Saúde atribuiu o aumento do número de SRAG sem causa definida à maior sensibilid­ade nos sistemas de vigilância em razão da pandemia.

A pasta diz que, no SUS, são realizados testes RT-PCR e, para casos que excedem 8 dias desde o início dos sintomas, testes rápidos, que identifica­m se a pessoa tem anticorpos para a Covid-19, mas são menos confiáveis.

A base de dados analisada pela Folha, contudo, indica que o único critério utilizado para o diagnóstic­o dos casos em questão foi o RT-PCR.

O Instituto Butantan, responsáve­l pela testagem em São Paulo, afirmou que observou problemas na coleta e que produziu e distribuiu material para treinar equipes.

A Secretaria de Saúde de MG afirmou que fornece orientaçõe­s para a coleta correta de amostras, mas que há diversos fatores que influencia­m a análise e que problemas têm acontecido em todo o país.

A Secretaria de Saúde do Paraná disse que em casos suspeitos com primeiro resultado negativo recomenda a realização de novo exame e que indica ainda a combinação do RT-PCR com testes rápidos em casos com sete ou mais dias desde o início dos sintomas.

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