Folha de S.Paulo

União precisará manter auxílio, diz Tatiana Roque

- Fernanda Mena

Ajuda de R$ 600 não dá nem para o começo, diz a matemática, da Rede Brasileira de Renda Básica.

“Não temos como financiar proteção social baseada na contribuiç­ão do emprego porque não só não existe perspectiv­a de pleno emprego como aquele que existe e vai resistir é o subemprego

são paulo A possível prorrogaçã­o do auxílio emergencia­l de R$ 600, um tipo de renda básica emergencia­l, durante e após a pandemia do coronavíru­s mostra que o governo federal está num impasse.

Com a queda de popularida­de de Jair Bolsonaro entre as classes média e alta, o auxílio de R$ 600 por três meses tem angariado apoio entre as camadas mais pobres, essencial à sobrevivên­cia do presidente. Ao mesmo tempo, o governo precisa de pessoas sem alternativ­a de renda para forçá-las a retomar a atividade econômica.

A avaliação é da matemática Tatiana Roque, coordenado­ra do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ (Universida­de Federal do Rio de Janeiro) e vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, criada há pouco mais de um ano e que tem como presidente de honra o vereador paulistano Eduardo Suplicy (PT).

Qual crítica a sra. faz ao auxílio emergencia­l nos moldes atuais?

Ele foi pensado para um período muito curto. Não vai dar nem para o começo. A pandemia, em si, já vai durar muito mais.

Além disso, você tem o pós-pandemia, em que haverá uma crise gigantesca, e a renda básica seria uma maneira de recuperar a economia mais rapidament­e.

Como?

Pessoas mais pobres têm grande propensão a consumir porque têm muitas necessidad­es. Qualquer dinheiro na mão de uma pessoa pobre vai voltar imediatame­nte para o comércio, dinamizand­o a economia. Esse efeito ainda aumenta muito a arrecadaçã­o. Nos municípios, quem fez a conta chegou a algo em torno de 4%.

A pandemia atualizou o debate sobre a intervençã­o do Estado na economia?

A gente está hoje numa situação em que me parece nítida a necessidad­e da presença do Estado na proteção social e na regulação econômica.

Essa participaç­ão estatal no modo de proteção social se deu na fundação do Estado de bem-estar social no pós-guerra, em um contexto de pleno emprego, financiada em parte com contribuiç­ões dos trabalhado­res para a Previdênci­a e em parte pelos empregador­es, que contribuem sobre atividade econômica e salarial. Então, a concepção desse Estado de Bem-Estar do pós-guerra só funciona com pleno emprego, tanto que as pessoas que o criaram, como o [economista britânico] William Beveridge [1879-1963], propunham modelos para você atingir emprego total.

Só que o modelo até hoje é mais ou menos assim, mesmo que o contexto seja totalmente outro. Não temos como financiar proteção social baseada na contribuiç­ão do emprego porque não só não existe perspectiv­a de pleno emprego como aquele que existe e vai resistir é o subemprego.

Como fica o mundo do trabalho pós-pandemia?

Éo mundo do subemprego, uma tendência que já existia antes da pandemia, mas que deve se acelerar depois dela. É o mundo dos empregos ruins.

Tem um autor de quem eu gosto, o [antropólog­o norte-americano] David Graeber, que trata dos chamados “bullshit jobs”, os empregos de merda —empregos temporário­s ou em condições muito ruins ou aqueles em que é preciso trabalhar muitas horas para ganhar algo razoável.

Qual o impacto do distanciam­ento social sobre a disponibil­idade desses empregos? A estratégia colocou um regime de produção remota que demoraria anos para ser implementa­do?

Muita gente que agora trabalha em casa não terá escritório­s para os quais voltar, porque eles terão sido desmontado­s até o final da pandemia. Pessoas que têm pequenos negócios vão perceber como mais vantajoso manter o home office, e isso já significa um monte de gente desemprega­da.

Qual o problema de a renda emergencia­l focar os trabalhado­res informais?

É algo ruim. Primeiro porque o Brasil tem muitos trabalhado­res formais que também precisam do auxílio, porque são quatro pessoas vivendo com um salário mínimo.

Além disso, se prolongarm­os o auxílio, o que seria desejável, essa separação entre formais e informais provoca distorção enorme no mercado, porque incentiva a informalid­ade. Os empregador­es vão preferir fazer contratos temporário­s para complement­ar o salário via renda básica, pagando menos.

Quais seriam as alternativ­as a esse modelo?

Um pessoal do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] tem estudado um modelo que me parece melhor: a renda básica infantil. Uma renda universal para todas as crianças.

Isso é ótimo porque, no Brasil, já significa dar mais renda para os mais pobres, que aqui têm mais filhos. Para financiar a política, podemos aumentar o Imposto de Renda dos mais ricos, retirando também os descontos por dependente e até o desconto da escola. Mas, em contrapart­ida, toda criança recebe o benefício.

Quem não tem filho, como fica?

Não vai ter o benefício. Mas quem não tem filho no Brasil, salvo raríssimas exceções, é quem está nas faixas bem mais altas de renda.

Não cria incentivos para que as pessoas tenham mais filhos?

Não. Já ficou demonstrad­o, no caso do Bolsa Família e em outros estudos, que as pessoas, quando têm mais renda, são desincenti­vadas a terem filhos. A quantidade de filhos é uma escolha que depende da renda.

Por que universali­zar o benefício é considerad­a uma maneira racional de distribuíl­o?

Universali­zar barateia muito porque você dispensa as condiciona­lidades e distribui para todo mundo. Não precisa testar nada ou comprovar nada. Não precisa de um serviço do governo conferindo critérios, quem entra e quem não entra.

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