União precisará manter auxílio, diz Tatiana Roque
Ajuda de R$ 600 não dá nem para o começo, diz a matemática, da Rede Brasileira de Renda Básica.
“Não temos como financiar proteção social baseada na contribuição do emprego porque não só não existe perspectiva de pleno emprego como aquele que existe e vai resistir é o subemprego
são paulo A possível prorrogação do auxílio emergencial de R$ 600, um tipo de renda básica emergencial, durante e após a pandemia do coronavírus mostra que o governo federal está num impasse.
Com a queda de popularidade de Jair Bolsonaro entre as classes média e alta, o auxílio de R$ 600 por três meses tem angariado apoio entre as camadas mais pobres, essencial à sobrevivência do presidente. Ao mesmo tempo, o governo precisa de pessoas sem alternativa de renda para forçá-las a retomar a atividade econômica.
A avaliação é da matemática Tatiana Roque, coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, criada há pouco mais de um ano e que tem como presidente de honra o vereador paulistano Eduardo Suplicy (PT).
Qual crítica a sra. faz ao auxílio emergencial nos moldes atuais?
Ele foi pensado para um período muito curto. Não vai dar nem para o começo. A pandemia, em si, já vai durar muito mais.
Além disso, você tem o pós-pandemia, em que haverá uma crise gigantesca, e a renda básica seria uma maneira de recuperar a economia mais rapidamente.
Como?
Pessoas mais pobres têm grande propensão a consumir porque têm muitas necessidades. Qualquer dinheiro na mão de uma pessoa pobre vai voltar imediatamente para o comércio, dinamizando a economia. Esse efeito ainda aumenta muito a arrecadação. Nos municípios, quem fez a conta chegou a algo em torno de 4%.
A pandemia atualizou o debate sobre a intervenção do Estado na economia?
A gente está hoje numa situação em que me parece nítida a necessidade da presença do Estado na proteção social e na regulação econômica.
Essa participação estatal no modo de proteção social se deu na fundação do Estado de bem-estar social no pós-guerra, em um contexto de pleno emprego, financiada em parte com contribuições dos trabalhadores para a Previdência e em parte pelos empregadores, que contribuem sobre atividade econômica e salarial. Então, a concepção desse Estado de Bem-Estar do pós-guerra só funciona com pleno emprego, tanto que as pessoas que o criaram, como o [economista britânico] William Beveridge [1879-1963], propunham modelos para você atingir emprego total.
Só que o modelo até hoje é mais ou menos assim, mesmo que o contexto seja totalmente outro. Não temos como financiar proteção social baseada na contribuição do emprego porque não só não existe perspectiva de pleno emprego como aquele que existe e vai resistir é o subemprego.
Como fica o mundo do trabalho pós-pandemia?
Éo mundo do subemprego, uma tendência que já existia antes da pandemia, mas que deve se acelerar depois dela. É o mundo dos empregos ruins.
Tem um autor de quem eu gosto, o [antropólogo norte-americano] David Graeber, que trata dos chamados “bullshit jobs”, os empregos de merda —empregos temporários ou em condições muito ruins ou aqueles em que é preciso trabalhar muitas horas para ganhar algo razoável.
Qual o impacto do distanciamento social sobre a disponibilidade desses empregos? A estratégia colocou um regime de produção remota que demoraria anos para ser implementado?
Muita gente que agora trabalha em casa não terá escritórios para os quais voltar, porque eles terão sido desmontados até o final da pandemia. Pessoas que têm pequenos negócios vão perceber como mais vantajoso manter o home office, e isso já significa um monte de gente desempregada.
Qual o problema de a renda emergencial focar os trabalhadores informais?
É algo ruim. Primeiro porque o Brasil tem muitos trabalhadores formais que também precisam do auxílio, porque são quatro pessoas vivendo com um salário mínimo.
Além disso, se prolongarmos o auxílio, o que seria desejável, essa separação entre formais e informais provoca distorção enorme no mercado, porque incentiva a informalidade. Os empregadores vão preferir fazer contratos temporários para complementar o salário via renda básica, pagando menos.
Quais seriam as alternativas a esse modelo?
Um pessoal do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] tem estudado um modelo que me parece melhor: a renda básica infantil. Uma renda universal para todas as crianças.
Isso é ótimo porque, no Brasil, já significa dar mais renda para os mais pobres, que aqui têm mais filhos. Para financiar a política, podemos aumentar o Imposto de Renda dos mais ricos, retirando também os descontos por dependente e até o desconto da escola. Mas, em contrapartida, toda criança recebe o benefício.
Quem não tem filho, como fica?
Não vai ter o benefício. Mas quem não tem filho no Brasil, salvo raríssimas exceções, é quem está nas faixas bem mais altas de renda.
Não cria incentivos para que as pessoas tenham mais filhos?
Não. Já ficou demonstrado, no caso do Bolsa Família e em outros estudos, que as pessoas, quando têm mais renda, são desincentivadas a terem filhos. A quantidade de filhos é uma escolha que depende da renda.
Por que universalizar o benefício é considerada uma maneira racional de distribuílo?
Universalizar barateia muito porque você dispensa as condicionalidades e distribui para todo mundo. Não precisa testar nada ou comprovar nada. Não precisa de um serviço do governo conferindo critérios, quem entra e quem não entra.