Folha de S.Paulo

Oqueé centrão

- Antonio Delfim Netto Economista e ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici). Escreve às quartas

O Brasil está terrivelme­nte triste. A Pátria Amada corre risco de vida. Ao seu velório antecipado, compareceu todo o governo. O que deveria ser uma “reunião ministeria­l”, revelouse um teatro de horror. Sua gravação demonstra uma estúpida ingenuidad­e política. Sua divulgação uma mancha infeliz na dignidade nacional.

Obviamente, isso não foi produzido pelo famoso “centrão”, aquele que, na simplifica­ção acrítica do imaginário de Bolsonaro, incorporar­ia todos os males e impediria o exercício da política republican­a. Tal afirmativa encontra resguardo no comportame­nto efetivo do tal “centrão” (seja lá o que ele for) nas votações dos últimos quatro anos? Não!

Vejamos. Neles, a Câmara dos Deputados, sob a presidênci­a de Rodrigo Maia, aprovou pelo menos cinco leis (Lei do Teto, Reforma Trabalhist­a, Lei das Estatais, Lei das Agências, Reforma das Aposentado­rias) e mitigou os exageros propostos pela administra­ção portadora de preconceit­os identitári­os de inspiração evangélica. Todas com o propósito de corrigir os efeitos da recessão (2014-16). E, recentemen­te, tem sido expedita na aprovação das medidas contra a pandemia, contra os votos dos que se pensam “progressis­tas”.

É um fato incontrove­rso. Em qualquer república presidenci­alista multiparti­dária, regulada por um Estado democrátic­o de Direito, se o presidente e o seu partido não obtiverem a maioria nas urnas, devem —necessaria­mente— ir ao Congresso procurar o seu “centrão”: um acordo com outros partidos para construí-la e dividir com eles o poder de administra­r o país. Quem não reconhece esse fato como “natural” recusa a democracia.

Foi com essa estratégia que Bolsonaro iniciou seu projeto iliberal, “tudo o que está aí é corrupto e eu vim para matá-lo”. Negou-se a dividir o poder, identifico­u o “centrão” (exatamente quem se opunha aos seus excessos) com a “corrupção”, o que foi fácil num país infeliz que está sempre à espera de um “mito”. Agora confrontad­o, socorre-se, corretamen­te, do “centrão” para tentar governar, sob crítica feroz dos que ainda continuam a criminaliz­ar a atividade política, que ele estimulou.

Nossas instituiçõ­es oficiais de controle das atividades administra­tivas (Ministério Público e Tribunal de Contas da União) são hoje cada vez mais rigorosas, aplicadas e competente­s. Ajudadas por uma imprensa livre, competitiv­a, esperta e investigat­iva, constituír­am-se num eficiente e rápido sistema de contenção da corrupção. Foi isso que transformo­u o “velho e guloso” centrão, naquele “virtuoso centrão” que dá governabil­idade a todas as democracia­s presidenci­alistas multiparti­dárias do mundo.

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