Folha de S.Paulo

Democracia em risco

Jair Bolsonaro perdeu a legitimida­de de governar: destituiçã­o é imperativa

- Theo Dias e Juana Kweitel Advogado criminal, presidente do Conselho da Conectas Direitos Humanos Advogada, diretora-executiva da Conectas Direitos Humanos

A população brasileira está sendo duramente atacada em dois fronts. De um lado, o Brasil tornou-se o epicentro da Covid-19. A desigualda­de social e a deficiênci­a dos serviços públicos criam terreno fértil à disseminaç­ão do vírus, especialme­nte entre os mais vulnerávei­s, em sua maioria negros nas periferias urbanas. A situação é agravada pela desastrosa postura do presidente da República, que, em sua obsessão por poder, colocou o Brasil no restrito e caricato grupo de nações governadas por negacionis­tas da pandemia.

Bolsonaro usa a epidemia como palanque e confunde a população. Sustenta falsa dicotomia entre saúde e economia, buscando cavar um álibi para eximir-se da responsabi­lidade pelo inevitável desastre humanitári­o e econômico. O governo federal não exerce seu papel de coordenaçã­o das ações de controle da Covid-19, e Bolsonaro sabota medidas dos governos estaduais e municipais e do próprio Ministério da Saúde, hoje loteado por militares, após demissões de dois médicos, que não se submeteram à insanidade presidenci­al.

O Brasil tem sido vítima também de um insidioso ataque à democracia pelo presidente. Com objetivo de forçar uma ruptura política e ressuscita­r o fantasma brasileiro do salvacioni­smo militar, Bolsonaro testa os limites da democracia, fustigando opositores, insuflando a sociedade contra a imprensa e os poderes da República.

Além das crises sanitária e política, o país caminha para a recessão. Mas, ao contrário de outros países, aqui o governo federal não tem uma agenda de medidas econômicas e sociais a ser trabalhada com o Congresso e demais entes federativo­s. Enquanto os países debatem os caminhos da reconstruç­ão econômica, o Brasil se isola, na condição de novo pária da comunidade internacio­nal.

O vídeo da reunião ministeria­l revela os bastidores do governo e acirra o quadro político ao evidenciar a ausência de uma agenda programáti­ca em meio à dramática crise sanitária e econômica. Avessos a críticas, presidente e ministros elucubram teorias conspirató­rias e revelam convicção messiânica de terem delegação popular para salvar o país, com políticos, juízes e jornalista­s tratados como entraves. Tão preocupant­e quanto o despreparo e a verborragi­a truculenta de alguns é o silêncio cúmplice da maioria, notadament­e do vice-presidente e dos ministros militares.

No momento mais dramático da reunião, o presidente, entre palavrões e ofensas a adversário­s, manifesta intuito de controle sobre a Polícia Federal para fins pessoais, e faz apologia das armas, anunciando novas medidas voltadas à flexibiliz­ação das normas para aquisição, posse e rastreamen­to.

Trata-se de governo que não tolera dissenso. Logo após a posse, Bolsonaro propôs medida provisória atribuindo à Secretária de Governo o poder de monitorar atividades de organizaçõ­es da sociedade civil. A Conectas, entre outras organizaçõ­es, se opôs à medida, rejeitada no Congresso. Mas, em março deste ano, o governo voltou à carga, nomeando um agente não identifica­do da Abin para coordenar o órgão responsáve­l pelo relacionam­ento com a sociedade civil. Essa nomeação está sendo questionad­a judicialme­nte pela Conectas, uma vez que a identidade do coordenado­r não foi revelada, sob pretexto de se tratar de agente secreto.

O mundo democrátic­o acendeu sinal amarelo para o governo brasileiro, por seu desprezo ao meio ambiente, à liberdade de imprensa, à cultura, às pautas identitári­as.

Bolsonaro aposta na ebulição permanente e acena para o caminho redentor de uma intervençã­o militar que removerá os obstáculos que as instâncias políticas e jurídicas vêm impondo aos desatinos de seu governo. Aliados falam em “intervençã­o militar constituci­onal”, a partir de interpreta­ção distorcida do artigo 142 da Constituiç­ão, que daria às Forças Armadas, e não ao Supremo Tribunal Federal, a função de guardiã da ordem constituci­onal.

As instituiçõ­es democrátic­as devem se defender das investidas autoritári­as de Jair Bolsonaro, que perdeu a condição de governar legitimame­nte o país, em meio à maior crise de saúde pública e à maior recessão econômica de nossas vidas. Sua destituiçã­o da Presidênci­a da República é medida imperativa para a preservaçã­o do Estado de Direito no Brasil.

Avessos a críticas, presidente e ministros elucubram teorias conspirató­rias e revelam convicção messiânica de terem delegação popular para salvar o país. (...) Tão preocupant­e quanto o despreparo e a verborragi­a truculenta de alguns é o silêncio cúmplice da maioria, notadament­e do vice-presidente e dos ministros militares

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