Folha de S.Paulo

Nicarágua tem salto de casos de um dia para o outro e acende alerta

Ditador negacionis­ta é acusado de registrar aumento de infecções para reduzir taxa de letalidade por coronavíru­s

- Sylvia Colombo

buenos aires Na Nicarágua, governada pelo negacionis­ta Daniel Ortega, o número de casos de coronavíru­s viu um salto absurdo em 15 dias: das 25 infecções confirmada­s até 18 de maio, o país registra agora 759 episódios de Covid-19.

E o aumento veio em picos. De um dia para o outro, de 18 para 19 de maio, foram computados 229 novos casos. Depois, em 25 de maio, quando a Nicarágua acumulava 279 contaminaç­ões, a cifra foi para 759 no dia seguinte.

Os críticos do regime afirmam que o ditador teria alterado os dados para diminuir a taxa de letalidade do país.

“Com 25 casos e 8 mortes, tínhamos a maior cifra neste índice entre os países da América Central. Ortega percebeu que isso era um erro”, diz o infectolog­ista Leonel Argüello. “Agora, aumentam os casos, mas as mortes se mantêm baixas. De todo modo, não são dados confiáveis.”

No mesmo período do salto de casos, o número de mortes saiu de 8 para chegar a 35.

O questionam­ento é feito por médicos independen­tes e pela ONG Observatór­io Cidadão, que entrevista profission­ais de saúde e familiares de pessoas com sintomas e compara números de mortos com os de enterros.

Além de registrar que, segundo o levantamen­to próprio, há 2.323 casos confirmado­s e 465 mortes na Nicarágua,

a organizaçã­o diz que os chamados “enterros express”, feitos de madrugada, têm aumentado, causando reclamaçõe­s de famílias, impedidas de acompanhar os funerais.

A Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) divulgou comunicado no qual afirma que “a Nicarágua tem faltado com o compromiss­o de ser transparen­te quanto as informaçõe­s relacionad­as ao coronavíru­s”.

Já o Alto Comissaria­do das Nações Unidas para os Direitos Humanos também pediu à ditadura nicaraguen­se que dê atenção à pandemia.

Contradize­ndo as orientaçõe­s da OMS, o governo da Nicarágua não adotou medidas de isolamento social. Pelo contrário, seguiu convocando marchas e permitindo eventos religiosos e esportivos para grupos grandes.

Na última vez em que foi à TV, Ortega disse que o coronavíru­s é “uma doença de ricos, e a população comum pode e deve seguir trabalhand­o”.

A visão do ditador está impressa no protocolo para registrar a doença. Testes de detecção da Covid-19 só são autorizado­s pelo Ministério da Saúde aos que viajaram ao exterior recentemen­te ou tiveram contato com alguém que esteve fora do país. Os demais são tratados como possíveis casos de “pneumonia atípica”.

Segundo Argüello, “há clínicas privadas equipadas para os testes, mas elas estão proibidas [de atuar] pela ditadura”.

No começo da pandemia, Ortega proibiu que profission­ais de saúde usassem máscaras, para “não assustar a população”. Segundo o Observatór­io Cidadão, 246 médicos e enfermeiro­s foram contaminad­os.

“As pessoas vão trabalhar e levam de casa, escondidos, suas máscaras. Tentavam se proteger como dá. Agora, há vários colegas doentes”, diz o infectolog­ista Álvaro Ramírez.

“Os médicos desses hospitais estão sobrecarre­gados e com medo, mas não reclamam nem dão entrevista­s porque temem perder o emprego.”

O pavor atinge também os que apresentam sintomas e, com medo de represália­s, deixam de procurar hospitais. A imprensa independen­te tem mostrado imagens de bairros pobres da capital, Manágua, ondepessoa­smorrememc­asa.

Para Argüello, porém, essa situação vem mudando em alguns setores da sociedade. “As pessoas se dão conta de que algo está acontecend­o, que a doença pode estar crescendo de modo exponencia­l. Se você vai a mercados populares, a jogos de futebol ou a escolas, vê que há muita gente se cuidando por conta própria.”

Ortega, por sua vez, nega-se a suspender as aulas e afirma que o ano letivo será cumprido. Sua mulher, Rosario Murillo, número dois do regime, estimula em seus pronunciam­entos que crianças compareçam às aulas, dizendo que essa doença não as afeta.

A Unidade Sindical do Magistério enviou um pedido para que Ortega repense o caso das escolas. A presidente do sindicato, Lesbia Rodríguez, defendeu que professore­s correm “grave risco ao usar o transporte público para chegar ao trabalho, colocando em perigo a saúde deles e dos alunos”.

A Alianza Cívica, que reúne os partidos de oposição ao regime, pede que o ditador admita que a doença está se espalhando e que promova uma campanha de prevenção e de isolamento social.

A reação também vem de países estrangeir­os. A embaixada dos EUA recomendou que cidadãos americanos deixassem o país e repatriou mais de 200. O mesmo fizeram França e Alemanha.

O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, disse, na semana passada, que estava “preocupado com os relatos de hospitais cheios e de cadáveres enterrados à noite”.

Um dos casos denunciado­s pela oposição foi a prisão de pessoas que vendiam folhas de eucalipto, que, segundo elas, eram boas para curar a Covid-19. “Prenderam essa gente não pelo que estavam vendendo, mas porque estavam dizendo que a Covid-19 existe. Algo que um vendedor ambulante já sabe, mas o governo, parece que não”, diz o deputado liberal Elíseo Núñez.

A doença começou a ser mais visível para a população quando afetou figuras do esporte, como o técnico de beisebol Carlos Aranda, que tinha 59 anos, adoeceu e morreu.

A família afirmou à imprensa local que insistiu para que ele parasse de trabalhar e procurasse assistênci­a médica.

“Se eu não for, eles me demitem e não me pagam”, teria respondido. Mesmo com os sintomas, compareceu aos jogos do seu time, o San Fernando, e interagiu com colegas. Quando piorou, foi internado e morreu dias depois.

Agora, a contaminaç­ão entre jogadores tem sido tão alta que, em alguns clubes, técnicos têm chamado até jardineiro­s para completar as equipes durante os treinament­os.

A Comissão Nicaraguen­se de Beisebol Superior pediu autorizaçã­o para suspender o campeonato. Obteve a permissão, mas com a proibição de dizer que a razão era coronavíru­s, conta Berman Espinoza, jogador do Matagalpa.

“Estamos com muito medo. Não sabemos se, depois de um treinament­o, não estaremos levando o vírus para casa”.

Segundo país mais pobre da América Latina, a Nicarágua deve ter queda de 5,9% no PIB, segundo levantamen­to da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina).

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Isidro Hernández - 23.mai.20/AFP Trabalhado­res abrem covas em cemitério de Manágua
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