Favela de palafitas enfrenta incêndio e enchentes em meio à pandemia
Dique Vila Gilda, em Santos, também tem subnotificação e proliferação dos casos de Covid-19
SANTOS Por cima da água que passa embaixo das palafitas que abrigam centenas de famílias na zona noroeste de Santos, no litoral paulista, um incêndio começou na noite de 20 de abril. Foram afetadas pelo fogo 125 famílias, que viram seus barracos queimarem.
Maior comunidade de palafitas (tipo de habitação sustentada por estacas às margens de um rio) do Brasil, a favela do Dique Vila Gilda abriga cerca de 26 mil pessoas.
Além dos problemas rotineiros, como incêndios e tempestades, que alagam as ruas e casas, o Dique vem sofrendo os impactos da Covid-19, com proliferação de casos da doença e subnotificação.
“Nesse incêndio eu não consegui ajudar. Sempre sou o primeiro a ir, mas não tinha forças mesmo. Só ouvia o pessoal passando”, conta o morador Carlos Alberto Moraes, 50.
Piloto (apelido que Carlos conta ter ganhado pelo modo como dirige sua bicicleta) estava de cama, com sintomas de infecção por coronavírus no dia que o fogo se alastrou entre os barracos vizinhos.
“Do meio das palafitas para o final é onde o bicho pega. É muito difícil. Ali as pessoas dormem preocupadas com água, vento e fogo, porque podem perder tudo”, disse José Virgílio de Figueiredo, 71.
Presidente e fundador do Arte no Dique, instituição cultural da comunidade que tem 85% de seus colaboradores oriundos das palafitas, Virgílio apontou que sente a proximidade do novo coronavírus pelo aumento de pessoas ao seu redor com sintomas.
São amigos, conhecidos, mães de alunos, jovens e colaboradores do instituto que foram contaminados, alguns deles internados em hospitais.
Em um dos becos da comunidade, diversos moradores apresentaram sintomas semelhantes: perda de paladar, dor de cabeça e febre.
“Aqui quase todo mundo pegou. Eu e meu marido quase nem saímos de casa mais”, conta a dona de casa Sonia Maria Aparecida, 58, cuja filha e o neto contraíram o vírus.
A assistente de marketing Denise Correia Santos, 33, foi uma das moradoras do Dique que sofreu com a subnotificação. Quando conversou com a reportagem, ela ainda se recuperava em casa de um diagnóstico positivo do Covid-19, obtido após duas visitas a hospitais da região que haviam descartado a hipótese.
“Os médicos diziam que poderia ser problema gastrointestinal, um outro disse que era coluna”, apontou.
Sem febre nem falta de ar, Denise começou a sofrer de fortes dores de estômago, similares a uma gastrite. O desconforto foi aumentando com o passar dos dias e passou a ser acompanhado de inchaço abdominal, até se tornar quase insuportável.
Ela só teve o diagnóstico positivo 11 dias depois do início dos sintomas depois de se dirigir a um dos pontos de testes grátis disponibilizados pela Prefeitura de Santos.
Enquanto estava doente, Denise, que mora no Dique com o marido e três filhos, mandou as crianças para a casa da irmã, outra que passou a sentir os sintomas.
Ela conhece outros moradores da comunidade, inclusive do grupo de risco, que foram dispensados de hospitais locais, mas com a piora dos sintomas fizeram o exame gratuito com a prefeitura e tiveram resultado positivo para Covid.
“Muita gente aqui não tem como ficar em casa, porque famílias de muitas pessoas moram juntas em uma mesma casa, de poucos cômodos, então é difícil”, relata.
O bairro do Rádio Clube, onde está o Dique, é o terceiro em Santos com mais casos do novo coronavírus: são 212 contaminados e sete óbitos.
Além da Covid-19, os habitantes do Dique convivem com a dificuldade de impor o isolamento social em uma comunidade com casebres grudados entre si, que abrigam até uma dezena de pessoas em um mesmo cômodo.
A preocupação ainda tem aumentado com o ressurgimento de bailes funk, agora improvisados por sons de carros. Foram constantes as reclamações de moradores à reportagem, que visitou o local no dia 27 de maio. A maior parte deles não quis se identificar com medo de retaliações.
“Fim de semana é complicado. Vem muita gente de fora da comunidade. Eles vêm, ligam carros com som alto e aí começa, né? Tem muita aglomeração. No último feriado lotaram as ruas. Tem sido cada dia mais difícil”, disse Solange Aparecida Aires, 56, moradora do Dique desde os 12 anos.
Ela teme perder o pai de 86 anos, que já tem a saúde debilitada após sofrer três AVCs, e se preocupa com os filhos e netos, todos com quadros agudos de bronquite.
No incêndio, além das casas, 35 famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família também perderam os cartões de saque do benefício, o que vem dificultando o recebimento dos valores.
A Prefeitura de Santos afirma que estão em construção 1.318 apartamentos em dois conjuntos habitacionais que atenderão moradores do Dique Vila Gilda e que, hoje, 641 famílias de lá recebem mensalmente auxílio financeiro.
Contra a subnotificação, o município tem oferecido testes rápidos para Covid-19. Também conta que, desde março, oferece 40 mil refeições nas quatro unidades do Bom Prato da zona noroeste.
Sobre os bailes funk, a Polícia Militar diz que busca proporcionar segurança à comunidade e tem realizado operações para impedir que ocorram eventos não autorizados.