Folha de S.Paulo

Vidas negras importam

A desigualda­de de direitos é um problema de todos

- Ilona Szabó de Carvalho Empreended­ora cívica, mestre em estudos internacio­nais pela Universida­de de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”

“Eu não consigo respirar”. Essas foram as últimas palavras de um cidadão americano, George Floyd, gravadas em vídeo, enquanto ele era sufocado por um policial até ficar inconscien­te e, em seguida, falecer. Já vimos esse filme. Mais de mil pessoas são mortas pela polícia nos EUA todos os anos, a maioria delas jovens e negras. Essas mortes destroem famílias, mas são muitas vezes ignoradas pelas autoridade­s. Desta vez é diferente. Protestos eclodiram em mais de 140 cidades americanas e um presidente enfraqueci­do e com medo insta os governador­es, a quem chama de fracos, a reprimi-los com o uso da força.

Os paralelos com o que está acontecend­o no Brasil são desconcert­antes. Bolsonaro foi eleito prometendo uma “licença para matar” aos policiais do país —que já matavam mais do que em qualquer outro lugar.

No mês passado, João Pedro Matos Pinto, um garoto de 14 anos, foi morto a tiros pela polícia enquanto brincava em sua própria casa no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Em abril de 2020, a polícia matou 1 pessoa a cada 4 horas no Rio de Janeiro, 4 dos mortos eram crianças. Em São Paulo, 1 pessoa foi morta a cada 8 horas por policiais nos três primeiros meses do ano.

Tanto os EUA quanto o Brasil registram os mais altos índices de violência policial do mundo. No Brasil, um país que já teve mais de 5.800 mortes por policiais em 2019, as chamadas mortes por intervençã­o policial aumentaram no Rio de Janeiro e em São Paulo no começo de 2020. A questão é quanto mais uma sociedade brutalizad­a pode suportar? Alguns cariocas começaram a protestar em frente ao palácio do governador, mas foram recebidos por policiais armados com fuzis.

A Covid-19 está revelando as desigualda­des que afetam nossas sociedades nos termos mais severos. A verdade é que nem todos são afetados igualmente pelo vírus ou pela violência policial. Os negros têm maior probabilid­ade de morrer de coronavíru­s e de brutalidad­e policial. E eles estão morrendo em plena vista de cidadãos e suas câmeras. Isso é um ultraje à nossa consciênci­a e às nossas responsabi­lidades. Não podemos nos dar ao luxo de esquecer. Nossa humanidade comum exige uma resposta. E se isso falhar, os manifestan­tes garantirão que nos lembremos.

Existem poucas causas mais fortes para a desobediên­cia civil do que a violência policial contra os cidadãos. É a ruptura da obrigação mais sagrada do Estado democrátic­o de Direito de manter-nos seguros perante a lei. Os protestos sem precedente­s nos EUA são um símbolo dos contratos sociais quebrados que não mais vinculam nossas sociedades. Eles são uma ilustração perfeita da história de exclusão e marginaliz­ação que está matando a alma das repúblicas.

O fracasso dos líderes nos EUA e no Brasil em reconhecer isso, ou pior, ao incitar o uso da força contra cidadãos, é uma falha da mais alta ordem.

A agitação civil crescente é um sinal de alerta. Na maioria das vezes, protestos são pacíficos e não violentos, mas com o aumento das tensões e demandas não atendidas de populações desassisti­das, basta uma faísca para incendiá-los. Nossas relações políticas, econômicas e sociais precisam ser fundamenta­lmente reimaginad­as. A aceitação silenciosa do abuso da força policial e da retórica de nós contra eles só manterão as chamas acesas.

Assim como aprendemos com a Covid-19, a desigualda­de do direito a respirar e ser tratado com dignidade pelo Estado é problema de todos, e não só dos grupos mais atingidos. Vidas negras importam, e se essa mensagem dos movimentos de reação não for traduzida em mudanças estruturai­s em sociedades desiguais, nossas repúblicas não durarão.

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