Médica é espancada por 5 pessoas que frequentavam ‘baile do Covid-19’ no RJ
Anestesista sofreu agressões e teve joelho quebrado após danificar carro de PM que estava na festa
são paulo A médica Ticyana D’Azambujja, 35, foi espancada por cinco frequentadores de um baile chamado Covid-19 após reclamar do barulho na casa vizinha ao seu prédio no Grajaú, zona norte do Rio de Janeiro, e quebrar o vidro do carro de um PM que estava na Festa do Corona.
A anestesista que atua na linha de frente da pandemia no hospital de campanha LagoaBarra relata os momentos de terror vividos no sábado (30), no intervalo entre plantões.
“Dois caras fortões me alcançaram. Um deles me enforcou, apertando meu pescoço até eu desmaiar. Caí no chão e pisaram nas minhas mãos. Quando acordei, estava com o pé de um cara de uns 100 kg no meu tórax”, relatou Azambujja à Folha, ao retornar do IML (Instituto Médico Legal) no final da tarde da última segunda-feira (1º).
Pela manhã, a médica de 1,50 m e 45 kg havia registrado boletim de ocorrência por agressão e tentativa de homicídio na 20ª Delegacia Policial (Vila Isabel). Ela teve o joelho esquerdo quebrado, duas mãos contundidas, ficou com o pescoço inchado com marcas de enforcamento e hematomas nas pernas e nos pés.
Além do exame de corpo de delito para documentar as lesões, a vítima coletou fotos e elencou testemunhas que comprovariam que os ferimentos são resultados de golpes e chutes desferidos por pelo menos cinco agressores.
Segundo Azambujja, as agressões ocorreram por volta das 17h. Após ir ao local da festa para reclamar do barulho, que havia começado por volta das 12h, e ser xingada e ignorada pelos organizadores, ela desferiu golpes de martelo em um Mini Cooper parado em local proibido.
O dono do veículo danificado por ela, um policial militar identificado como Luis Eduardo Salgueiro, e a mulher dele foram cobrar satisfações.
“Ela dizia que eu tinha mexido com a pessoa errada, esfregava a identificação de policial do marido na minha cara”, afirma. “Foi uma idiotice, uma imaturidade minha”, admite a médica, que passara a noite no plantão e voltaria para um novo turno sem dormir.
A tentativa desesperada de acabar na marra com uma das festas do Corona, em pleno isolamento imposto para tentar conter a escalada de infecções e mortes pelo novo coronavírus, quase resultou em linchamento público.
Apavorada, ela correu em direção ao hospital italiano, que fica na mesma rua. O espancamento começou em frente ao local. Nem os seguranças nem os pedestres e motoristas que assistiram às cenas de violência a socorreram.
Uma senhora que passava chegou a incentivar os agressores dizendo “mata mesmo”. Um deles teria dito que não adiantava a médica correr porque ela “estava morta”.
“Eu gritava por socorro e as pessoas ficavam só olhando. Fiquei muito chateada porque sou muito ativa na comunidade. Já fiz plantões naquele hospital. Atendo gratuitamente. Dou receitas para quem precisa”, afirma Azambujja.
Ela conta que foi arrastada pela rua até em frente ao batalhão do Corpo de Bombeiros, localizado bem ao lado da residência onde tem ocorrido regularmente as festas temáticas, desrespeitando regras de não aglomeração.
“Quando vi os bombeiros do batalhão da Marechal Jofre implorei por ajuda”, diz.
Segundo ela, o pedido para que garantissem sua integridade física até que a polícia chegasse foi ignorado. “Eles riram e disseram que eu era bandidinha e meu lugar era apanhando no chão. Deviam ser amigos do dono da festa.”
Apenas três vizinhos a acudiram. O primeiro a interceder, um defensor público que pediu ao grupo que aguardassem a chegada dos policiais, também foi agredido.
“Deram um soco na boca dele, dizendo que ele estava defendendo bandido”, afirma a médica. O pânico, diz ela, foi aumentando à medida que ouvia um dos agressores dizer para a colocarem no carro para “dar um sumiço nela”.
As agressões só pararam com a intervenção de uma mulher loura, chamada Fabiana, que estava na festa. “Ela ficou comigo e disse que ninguém ia mais me bater.”
A médica ficou agarrada à perna da moça e sob a proteção de um casal que mora no mesmo prédio dela, que também desceu para socorrê-la.
Três patrulhas da PM foram até o local, mas o dono do veículo desistiu da queixa. “Ele me pediu R$ 6.800 para que tudo ficasse por aquilo mesmo. Não aceitei”, diz a médica.
O dono do Mini Cooper não quis formalizar a queixa por danos. Os policiais alegaram não ter mandado para entrar na casa, onde a festança recomeçou pouco depois. Uma rotina que tem levado a vizinhança a chamar a polícia insistentemente, sem sucesso.
As festas do Corona ocorrem em um imóvel residencial vizinho de muro do batalhão do Corpo de Bombeiros. “Já deram tiros para o alto lá dentro. Fazem xixi na rua, jogam cervejas na rua e deixam carros parados em lugares proibidos”, relata Azambujja.
A festa tem copos personalizados com a inscrição Baile do Covid-19 e imagem de um revólver e do meme do caixão.
Com dores, a médica foi levada pelo casal de vizinhos ao hospital Rios D’or. Com as duas mãos machucadas e uma perna engessada, ela está temporariamente morando na casa do seu pai.
O delegado Roberto Ramos, do 20º DP, começou a ouvir testemunhas. “Com a ajuda de fotos estamos identificando os participantes da agressão e montando o quebra-cabeça.”
O policial compareceria à delegacia nesta terça-feira (2). “Vamos averiguar a extensão da participação dele e responsabilizar criminalmente os autores”, disse o delegado.
Já foram ouvidos o dono da casa e organizador da festa e a mulher que interferiu para proteger a vítima. A polícia vai apurar se houve omissão dos bombeiros. “Caso seja comprovado que eles ficaram inertes, o fato será comunicado aos superiores, por ser infração disciplinar e crime militar”, afirma o delegado.
Segundo ele, é prematuro afirmar que os agressores façam parte de milícias.
“Pensei muito se deveria denunciar o que aconteceu, pois tenho medo de represália”, diz a médica.
O caso se tornou público após Azambujja fazer um desabafo em post no Facebook. “Pisotearam na minha garganta mas não calaram a minha voz”, escreveu a anestesista.
Ela espera que as agressões não fiquem impunes. Mãe de um garoto de dois anos, ela mora sozinha desde que passou a trabalhar na linha de frente do combate à Covid-19. Neste período da pandemia, o filho está com o ex-marido.
Em abril, ela foi contaminada pelo novo coronavírus e ficou 14 dias em isolamento. Agora também vai ficar longe dos três hospitais com os quais têm contratos temporários para responder à emergência sanitária. “Até recuperar os movimentos das mãos, não vou poder trabalhar e vou ficar sem receber também.”
Ela conta que tem cumprido uma jornada extenuante de 84 horas de trabalho semanais entre o hospital Pedro Ernesto, do SUS, o hospital de campanha Lagoa-Barra, uma parceria público privada entre governo do Rio e a Rede D’Or, e o complexo hospitalar Niterói, que é particular.
No sábado de folga, ela não conseguiu ver o filho. “Estava exausta e pedi para meu ex-marido ficar com ele.” Ela espera conseguir retornar ao trabalho em dez dias.
“Estou muito chorosa, triste, e sem fé na humanidade. Machucada física, psicológica e espiritualmente. O que me dói mais não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons, com a indiferença, o ‘deixa morrer’. É o Rio das milícias. Todo mundo andando de cabeça baixa e boca calada.”
Em nota, a Polícia Militar informou que policiais do 6º BPM, da Tijuca, foram acionados para verificar duas ocorrências em horários diferentes na rua Marechal Jofre.
Na primeira, “por volta das 17h, foi apurado no local que uma mulher, bastante nervosa, danificou um veículo estacionado e, em consequência desse ato, foi agredida por um homem ainda não identificado. Um outro homem, que tentou defender a mulher, também foi agredido. Vale ressaltar que, como consta do boletim de ocorrência da PM elaborado pela equipe no local, as partes entraram em comum acordo e não foi realizado o registro na delegacia”.
Ainda segunda a nota, numa segunda ocorrência, um pouco mais tarde, “os policiais foram acionados para verificar denúncia sobre realização de festa numa casa na mesma rua. Por infringir as determinações do decreto governamental de isolamento social, o evento foi encerrado”.
“Dois caras fortões me alcançaram. Um deles me enforcou, apertando meu pescoço até eu desmaiar. Caí no chão e pisaram nas minhas mãos. Quando acordei, estava com o pé de um cara de uns 100 kg no meu tórax
Ticyana D’Azambujja, 35 médica anestesista, relatando as agressões que ela sofreu no último sábado (30)