Folha de S.Paulo

Cultura é abandonada e Congresso tenta suprir descaso de Bolsonaro

Projeto aprovado pelo Legislativ­o é um dos primeiros a mostrar preocupaçã­o com o impacto da Covid-19 no setor

- Danielle Brant e Talita Fernandes

A indefiniçã­o do governo Jair Bolsonaro sobre uma política nacional de cultura levou o Congresso a tentar preencher esse vazio e a aprovar projeto que destina a estados e municípios recursos para serem usados em ações para salvar o setor durante a crise do coronavíru­s.

O projeto é um dos poucos a materializ­ar a preocupaçã­o do Legislativ­o com o impacto da crise econômica para os artistas e para os espaços destinados a ações culturais.

Chamada de Lei Aldir Blanc, em homenagem ao cantor e compositor que morreu no mês passado de Covid-19, a proposta cria uma renda emergencia­l a profission­ais da área, prevê subsídios a centros culturais e destina recursos para editais públicos.

Pelo texto, a União terá de transferir R$ 3 bilhões a estados e municípios para que sejam aplicados nos três eixos de socorro à cultura.

Para a deputada Jandira Feghali (PC do B-RJ), relatora do projeto aprovado, há uma “orfandade nacional de política cultural hoje”. “A agenda vai partir das unidades federadas e vai acabar empurrando para a construção de uma política nacional”, diz.

A decisão de descentral­izar os recursos e aprovar a verba foi uma das poucas respostas do Congresso à falta de medidas do governo federal para socorrer a cultura durante pandemia, em meio ao caos que se encontra a secretaria que trata do setor. A pasta, que já passou por quatro titulares, vive um novo momento de impasse, com a saída da atriz Regina Duarte.

Escolhida por Bolsonaro para comandar a área da cultura do governo, a ex-atriz global já teve sua saída anunciada.

Regina passou por um processo de desgaste desde que entrou no governo, em março deste ano, e não conseguiu apresentar medidas em meio à pandemia. Mesmo anunciada por Bolsonaro como demissioná­ria, ela permanece oficialmen­te como secretária.

Sob o comando da atriz, a cultura sofreu uma intervençã­o da deputada Carla Zambelli (PSL-SP), que tem ditado regras no setor a pedido e sob aval de Bolsonaro, seguindo as ordens de manutenção da guerra cultural, defendida pelo escritor Olavo de Carvalho, ideólogo do bolsonaris­mo.

Embora a Câmara tenha aprovado o texto na semana passada, há a necessidad­e do crivo dos senadores. Por último, o texto vai à sanção de Bolsonaro, que pode impor vetos às medidas.

A falta de reação do Legislativ­o é atribuída justamente à desorganiz­ação do Executivo de Bolsonaro na área cultural. Congressis­tas dizem que, sem uma política nacional, fica difícil definir prioridade­s para o setor.

Até o momento, das 1.246 propostas apresentad­as para combater os efeitos da pandemia no país, somente seis tinham como objetivo apoiar a cultura —uma delas é o projeto relatado por Jandira.

Autor de um dos projetos, o deputado Felipe Carreras (PSB-PE) afirma que a cultura, um dos primeiros setores a parar na crise, será possivelme­nte o último a voltar. Para ele, falta atuação do Estado para ajudar as empresas que atuam na área a recuperare­m parte do prejuízo.

A proposta de Carreras busca compensar as empresas que tenham cancelado eventos por causa da pandemia. Elas terão prazo de até 12 meses para reembolsar consumidor­es pelo valor pago e não precisarão devolver a taxa de conveniênc­ia, por exemplo.

Para o deputado, coube ao Legislativ­o propor esse tipo de medida na ausência de uma diretriz federal sobre o assunto. “A Secretaria de Cultura não existe, a ex-secretária [Regina Duarte] tem uma atuação folclórica. O Parlamento busca, então, uma ferramenta de apoio para essa classe”, diz.

Ex-ministro da Cultura, o deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ) é da mesma opinião. Mesmo sem concordar integralme­nte com o projeto relatado por Jandira, ele afirma que decidiu engrossar a estratégia de consolidar iniciativa­s e estratégia­s voltadas ao setor.

Calero atribui a escassez de projetos federais de apoio à cultura ao “obscuranti­smo intranspon­ível do governo”.

“Eles consideram a cultura, por contestar a ordem vigente, propor novas ordens estéticas e formular novas proposiçõe­s sobre o mundo, como um adversário a ser abatido”, diz. Para ele, há uma miopia do Executivo federal, que prioriza a economia.

“O setor pode funcionar como eixo estratégic­o de desenvolvi­mento para geração de emprego e renda, turismo cultural. Mas nada disso é visto”, afirma. Desde que assumiu o governo, Bolsonaro não tem demonstrad­o apreço pela área cultural.

Pela pasta, reduzida a secretaria, passaram quatro titulares e há a perspectiv­a de que o ator Mario Frias —exgalã de “Malhação”, da Globo— seja o próximo escolhido para o cargo. Desde então não houve anúncio de medidas relevantes e os recursos para o setor estão contingenc­iados, como o Fundo Nacional de Cultura e o Fundo Setorial do Audiovisua­l.

Bolsonaro se elegeu com discurso anti-PT e antiesquer­da e, sob esse argumento, costuma classifica­r de comunistas vários nomes ligados ao setor cultural.

Por esse motivo, Regina teve vários de seus escolhidos para a equipe barrados pelo Palácio do Planalto, que tem aplicado um filtro ideológico para aceitar as nomeações.

Primeiro titular a ocupar a Secretaria de Cultura, Henrique Pires deixou o governo no ano passado alegando ter sofrido censura por parte do então ministro Osmar Terra, à época titular da Cidadania, à qual a pasta estava vinculada.

Na sequência, houve outros escândalos, como a gestão de Roberto Alvim, que deixou o governo em janeiro após ter publicado um vídeo parafrasea­ndo Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista.

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