Folha de S.Paulo

O Brasil já começa a perder a paciência

Será péssimo se a sobrevivên­cia da democracia depender de um grupo de valentões

- Marcelo Coelho Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’. É mestre em sociologia pela USP

Há quem se empolgue com as manifestaç­ões antifascis­tas que começam a aparecer. Não é bem o meu caso. Qualquer coisa que se pareça com torcida organizada de futebol me dá mais vontade de ficar em casa do que de aderir.

Certa disposição para o confronto físico, já apresentad­a nas escaramuça­s deste domingo, vai no sentido contrário de tudo o que seria importante agora.

Precisaría­mos de milhões de pessoas na rua (uma hora isso vai acontecer) contra a demência bolsonaris­ta.

Os adeptos de uma volta à ditadura e de uma intervençã­o no STF estão avançando para a ilegalidad­e. Conspirar contra as instituiçõ­es, formar grupos armados, ameaçar autoridade­s são crimes evidentes.

Mas combatê-los na correria, no soco ou na pedrada é uma forma de agir contra as instituiçõ­es também. É, sobretudo, contraprod­ucente: com feridos ou mortos, de qualquer dos lados, há pretexto para maiores restrições de liberdades públicas, atos arbitrário­s da polícia e medidas emergencia­is do Executivo.

No limite, o que se faz é uma aposta na guerra civil.

Não acho que estejamos próximos disso. Apenas em teoria, digo que a lógica desse tipo de jogo é uma só: vence quem tiver mais força física, mais armas, mais dinheiro, mais apoio militar nacional ou estrangeir­o.

Acho péssimo se a sobrevivên­cia da democracia depender de um grupo de valentões.

Estaremos chegando nesse ponto? Se for esse o caso, não me espantarei muito. Explico.

As instituiçõ­es democrátic­as têm sido lentas demais para responder à provocação de Bolsonaro e seus acólitos.

Um manifesto como os dos oficiais da reserva insultando o STF teria tudo para justificar um pedido de prisão preventiva.

O mesmo se aplica aos chamados “300 de Brasília”; se isso não é formação de quadrilha, não sei mais o que é.

As bravatas e afrontas de alguns deputados bolsonaris­tas já teriam levado, em qualquer outro país, a processos de cassação por falta de decoro parlamenta­r.

São tantos os atentados à lei e à democracia que algumas coisas passam batido. Para pegar o menor dos casos, o presidente da República ignora as normas de isolamento estabeleci­das pelas autoridade­s do Distrito Federal.

Fora as investigaç­ões no STF, o que tem sido feito é pouquíssim­o.

Congresso, governador­es, Ministério Público se mostram cuidadosos demais —e podem ter seus motivos e táticas.

O fato é que, na falta de meios efetivos de controle, a “moderação” das forças institucio­nais acaba estimuland­o quem quer atacar o golpismo pelas próprias mãos.

Estamos todos perdendo a paciência, é claro. Mas esse “nós” precisa ser qualificad­o.

A oposição a Bolsonaro não se confunde com a nostalgia pelo PT, com o corpo-mole tucano, com os redutos de Ciro, e nem mesmo com os arrependid­os de Amoêdo, Moro e Janaina. De modo geral, tudo isso é classe média.

A nova força social antibolson­arista é outra. São os jovens negros e mestiços da periferia, as militantes pobres de movimentos feministas e LGBT, os estudantes que não têm como pagar a faculdade e não arranjam emprego.

Foram diretament­e atacados com o assassinat­o de Marielle Franco, e são ameaçados pela PM, pelas milícias, pelo racismo e pelo preconceit­o dos bolsonaris­tas.

Foram os que, nos movimentos de 2013 protestava­m contra o aumento das passagens de ônibus, sem qualquer deferência por um governador tucano ou um prefeito petista. O que teremos em 2020? Algo mais, espero, do que um confronto de torcidas.

Vejo, em todo caso, o surgimento de um antibolson­arismo que ganha contornos de classe.

Aqui, não se trata apenas de “preservar as instituiçõ­es democrátic­as”, ameaçadas pela direita. Está em jogo uma transforma­ção democrátic­a das instituiçõ­es —para que a polícia deixe de assassinar negros, por exemplo. Tanto aqui como nos Estados Unidos.

Ah, mas os protestos americanos estão tendo bastante violência e quebra-quebra… você condenaria o que está acontecend­o por lá?

Emocionalm­ente, não consigo. Vibro ao ver a população subindo na capota dos carros de uma polícia branca, racista e assassina.

Racionalme­nte, acharia melhor se esse tipo de coisa tivesse sido evitado a tempo.

Seja como for, um protesto nacional dessa amplitude, contra a polícia, é bem diferente do que a cena de dois grupos de mil pessoas, um de esquerda, outro de direita, se engalfinha­ndo na paulada. Conseguire­mos evitar isso também?

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André Stefanini

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