Folha de S.Paulo

O corpo fala e não mente

Na estreia da Copa de 70, eu e Pelé nos entendíamo­s cada vez melhor

- Tostão Cronista esportivo, participou como jogador das Copas de 1966 e 1970. É formado em medicina

Há 50 anos, no dia 3 de junho, o Brasil estreou na Copa de 1970. Na semana anterior, Zagallo definiu o time, ao escalar o volante Piazza na zaga e Everaldo na lateral-esquerda.

O treinador achava que o clássico e fino zagueiro Joel, do Santos, titular da zaga, era um pouco indolente, e o reserva Fontana possuía poucos recursos técnicos. Piazza tinha duas qualidades importante­s para um volante e para um zagueiro: antevia o lance, se antecipava ao adversário e tinha um bom passe, ainda mais para um defensor.

Na semana da estreia, Marco Antônio, titular da lateralesq­uerda, reclamou de muitas dores musculares. O médico ficou na dúvida, já que o exame clínico era normal e, na época, não havia tomografia para diagnostic­ar pequenas lesões. Zagallo se antecipou ao Dr. Lídio Toledo e escalou o gaúcho Everaldo.

Na véspera da estreia, não dormi bem, como era habitual antes de um jogo importante. Pensei na partida e fiquei mais tenso. Isso me ajudava a atuar melhor. A ansiedade, até certo limite, é benéfica, por aumentar a concentraç­ão. O atleta fica mais esperto, ativo. Se é excessiva, prejudica a tomada de decisões. Grandes derrotas no esporte acontecem por problemas emocionais.

Ganhamos da Tchecoslov­áquia, por 4 a 1, de virada. A atuação não foi excepciona­l, mas o time já mostrava ótimas qualidades coletivas e individuai­s. O passe longo e perfeito de Gérson para Pelé, que subiu e adormeceu a bola no peito, com o corpo equilibrad­o e ereto, para, em seguida, finalizar, com precisão, é uma das maravilhas do Mundial.

Na mesma partida, Pelé, do meio-campo, encobriu o goleiro e quase marcou. Esse tipo de gol passou a ser chamado de “o gol que Pelé não fez”.

Eu e Pelé nos entendíamo­s cada vez melhor. Eu tentava acompanhá-lo. Antes de a bola chegar, ele se movimentav­a e, com os olhos expressivo­s, esbugalhad­os, me dizia tudo o que queria fazer. A comunicaçã­o analógica, pelo olhar e pelos movimentos do corpo, é imprecisa, porém, muito mais rica que a digital, por palavras. O corpo fala e não mente.

Eu tive, individual­mente, uma atuação discreta. Adaptava-me a uma nova posição. No Cruzeiro, eu recebia a bola no meiocampo e tinha toda a visão à frente. Na seleção, mais adiantado e de costas para o gol, a visão era toda para trás, do que acontecia desde o goleiro.

Em qualquer atividade, o conhecimen­to não está apenas na informação. Está também e, principalm­ente, na visão ampliada que temos do conjunto. Quanto mais lemos e vemos, mais sabemos. É preciso saber ver.

Duas máscaras

Enquanto não houver uma vacina, o que vai ainda demorar, precisamos ter muitos cuidados, como o uso constante de máscaras. Essas são diferentes de outra, que o ser humano costuma usar, para viver e sobreviver, decorrente­s de repressões e sublimaçõe­s dos instintos e dos desejos não aprovados pela sociedade.

Graças a esses mecanismos de defesa —pagamos um preço por isso—, existe a civilizaçã­o, ameaçada por um inimigo invisível, agressivo e traiçoeiro, ainda mais que o vírus encontra adversário­s impaciente­s, apressados e indiscipli­nados.

Preciso da ajuda de Fernando Pessoa para explicar melhor o uso das máscaras: “Fiz de mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não fiz. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti. Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecid­o”.

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