Folha de S.Paulo

Epidemias são parte da história

Durante cerco de Esparta, Atenas pode ter sido debilitada pela salmonela

- Marcelo Viana Matemático e diretor-geral do Impa. Ganhador do prêmio francês Louis D.

A Covid-19 é a primeira pandemia das nossas vidas e tomara que seja a última. Isso lhe dá, aos nossos olhos, dimensões de evento sem precedente­s.

Mas os agentes infeccioso­s (vírus, bactérias etc) sempre estiveram conosco. Muitos já infectavam as espécies que nos precederam, e agora partilhamo­s em herança com nossos primos primatas. Outros ficaram alheios à nossa existência por milênios, até que as circunstân­cias —a ação humana, por vezes— colocaram nossas vidas em contato.

O prestígio por sua ação na guerra contra a Pérsia e o poder de sua Marinha granjearam a Atenas hegemonia na Grécia clássica. Mas à medida que aumentavam o poder e a arrogância dos atenienses, também crescia o antagonism­o das outras cidades. Em 431 a.C., a paciência de Esparta e seus aliados acabou: começou a fatídica Guerra do Peloponeso.

No ano seguinte, o poderoso Exército espartano cercou Atenas. Espremida dentro das muralhas, em condições precárias de higiene, a população ateniense foi acometida por uma doença misteriosa que causava diarreia, dores, lesões e a morte. Um terço da população da cidade foi dizimado, incluindo o líder Péricles. Atenas ainda resistiria até 404 a. C., mas acabaria se submetendo.

Durante séculos, historiado­res e cientistas se questionar­am sobre a natureza dessa doença que debilitou as forças de Atenas num momento crucial. Escavações realizadas nos anos 1990 revelaram valas comuns da época do cerco. A exumação dos corpos identifico­u DNA da bactéria salmonela da febre tifoide, fazendo dela a principal suspeita pela epidemia.

Embora a bactéria da salmonela só tenha sido identifica­da na segunda metade do século 19, a genética indica que ela surgiu dezenas de milhares de anos atrás. Provavelme­nte já estava conosco no período nômade, mas foi com o desenvolvi­mento da agricultur­a e do sedentaris­mo que encontrou condições ideais para proliferar numa população humana que não parava de crescer.

Suspeita-se que tenha sido responsáve­l por diversos surtos graves com diarreia relatados ao longo da história.

O contágio da salmonela ocorre facilmente por meio de água ou alimentos contaminad­os. Mas no início do século 20, os médicos de Londres foram confrontad­os com surtos que não podiam ser explicados desse modo e que apresentav­am picos nos meses de verão. Após muita pesquisa, descobrira­m que a salmonela desenvolve­ra um novo método de proliferaç­ão, com a mosca como vetor de transmissã­o. Numa cidade que se movia a cavalo, era uma estratégia vencedora. A reputação da mosca, que até então se acreditava ser benéfica para a saúde pública, nunca mais foi a mesma.

Nossa associação involuntár­ia com agentes infeccioso­s também tem um lado positivo: permite usar métodos da genética para compreende­r fatos importante­s da nossa história. Voltarei ao tema.

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