Folha de S.Paulo

Por publicidad­e, governo tira verba do Bolsa Família

Portaria transfere R$ 83,9 mi do programa para comunicaçã­o da Presidênci­a

- Thiago Resende

O governo cortou o orçamento para o Nordeste, apesar da fila de espera no programa, e pretende usar os recursos para expandir a publicidad­e institucio­nal. Em live, Jair Bolsonaro chamou a reportagem de mentirosa.

O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) cortou o orçamento do Bolsa Família e pretende usar os recursos para expandir a publicidad­e institucio­nal. A tesourada foi no segmento destinado a atender as famílias carentes da região Nordeste, onde a cobertura foi reduzida e há fila de espera para ingressar no programa.

Uma portaria do Ministério da Economia retira R$ 83,9 milhões do programa e transfere essa verba para a comunicaçã­o institucio­nal da Presidênci­a da República.

Consideran­do que os beneficiár­ios recebem, normalment­e, pouco menos de R$ 200, o valor, segundo técnicos do governo, seria suficiente para atender cerca de 70 mil famílias.

Reportagem publicada pela Folha na terça-feira (2) mostrou que a fila de espera no Bolsa Família entre abril e maio superou 430 mil pedidos, e os recursos transferid­os poderiam reduzir essa fila.

O governo, porém, optou por reduzir gastos sociais e dá mais poder ao secretário de comunicaçã­o do Planalto, Fabio Wajngarten, cuja atuação tem sido criticada por suspeita de uso político do cargo.

O pedido de corte no Bolsa Família partiu da Presidênci­a da República e foi aprovado pela Junta Orçamentár­ia, formada pelo ministro Paulo Guedes (Economia) e Braga Netto (Casa Civil).

Em sua live semanal, Jair Bolsonaro chamou a reportagem da Folha de mentirosa e atacou o jornal.

“Está lá uma manchete interna deles, a primeira matéria, dizendo que eu tirei dinheiro do Bolsa Família para dar para a propaganda oficial. Olha, eu estou anunciando onde, ô, Folha de S.Paulo? Estou anunciando onde? Nós estamos gastando aproximada­mente em torno de 10% do que gastavam governos anteriores”, afirmou o presidente da República em sua live, nesta quinta-feira.

Bolsonaro admitiu que há fila de espera no Bolsa Família, mas ponderou que essas pessoas estão recebendo os R$ 600 do auxílio emergencia­l por causa do coronavíru­s.

“Quando é que vocês vão aprender... Não vão aprender, vou cansar de falar aqui, a ter vergonha na cara? Fazer uma matéria decente? Vocês podem até falar ‘tem tantos na fila, mas foram contemplad­os com auxílio emergencia­l de R$ 600’.”

A portaria foi assinada nesta terça-feira pelo secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues.

Procurados, os ministério­s da Economia e da Cidadania disseram que grande parte dos pagamentos do Bolsa Família em abril e maio foi financiada pelo programa de auxílio emergencia­l. Por isso, haveria uma sobra no orçamento.

Mas nenhum dos ministério­s citou a fila de espera do programa e por qual razão o dinheiro repassado à publicidad­e institucio­nal não foi usado para atender a famílias que vivem na pobreza ou extrema pobreza e aguardam o benefício.

O Palácio do Planalto apenas copiou os argumentos apresentad­os pelo Ministério da Economia.

O governo informou ainda que, nos próximos meses, continuará reduzindo o orçamento do programa social, pois, em sua avaliação, os recursos não serão necessário­s com a folga dada pelo auxílio emergencia­l —sem citar planos para reduzir a fila de espera.

Neste ano, o governo ainda não abriu espaço no Orçamento para a 13ª parcela do programa, promessa de Bolsonaro.

A cobertura do Bolsa Família nas regiões Norte e Nordeste continua abaixo do registrado em maio de 2019, quando o programa atingiu patamar recorde de famílias atendidas. Nessa mesma comparação, Sul e Sudeste ganharam mais peso.

Após reportagem da Folha, na quarta-feira (3) o PSOL apresentou um pedido para que o TCU (Tribunal de Contas da União) investigue a gestão do programa.

O partido também solicitou que o órgão apure as razões para a redução no orçamento na parcela que atende a famílias carentes no Nordeste.

Há um ano, o governo Bolsonaro iniciou uma sequência de cortes no programa social praticamen­te travou a entrada de novos beneficiár­ios.

Com o afrouxamen­to do Orçamento neste ano por causa da pandemia do novo coronavíru­s, mais dinheiro foi destinado ao programa e o governo conseguiu atender a mais pessoas carentes.

Mas a fila de espera ainda persiste e pune mais estados do Norte e do Nordeste.

O Bolsa Família é o carrochefe dos programas sociais do governo e transfere renda diretament­e para os mais pobres. A fila de espera se forma quando as respostas demoram mais de 45 dias.

O prazo vinha sendo cumprido desde agosto de 2017, durante a gestão do ex-presidente Michel Temer (MDB). Mas, por falta de recursos, o programa não consegue cobrir a todos desde junho de 2019.

O programa atende famílias com filhos de 0 a 17 anos e que vivem em situação de extrema pobreza, com renda per capita de até R$ 89 mensais, e pobreza, com renda entre R$ 89,01 e R$ 178 por mês. O benefício médio foi de R$ 191,86 até março.

Temporaria­mente, durante a pandemia, o valor depositado a quase todas as famílias será o mesmo do auxílio emergencia­l dado a trabalhado­res informais e microempre­endedores —de R$ 600.

Técnicos do governo temem que, sem a ampliação do Bolsa Família, a fila aumente ainda mais. Mais pessoas devem sofrer corte na renda por causa da crise econômica e entrar na faixa considerad­a pobre ou extremamen­te pobre, que tem direito à transferên­cia.

Assim que estourou a pandemia, Onyx Lorenzoni, recém-transferid­o para o Ministério da Cidadania, anunciou que em abril a cobertura do Bolsa Família, após sofrer sucessivos cortes, seria recorde. Mas não foi.

Foram 14,27 milhões de famílias beneficiad­as em abril, ante 14,34 milhões em maio do ano passado.

Em maio de 2020, a cobertura passou para 14,28 milhões, ainda sem retomar o patamar anterior à maior sequência de cortes na história do programa.

Os dados da reportagem de terça foram obtidos pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação. Foi a primeira vez que o Ministério da Cidadania revelou oficialmen­te o tamanho da fila. Desde outubro do ano passado, quando a Folha mostrou o enxugament­o no Bolsa Família, o governo se recusava a apresentar informaçõe­s à imprensa e à Câmara, que cobrava respostas.

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