Folha de S.Paulo

Acabou a era da inocência

O enfrentame­nto ao racismo precisa ser mais do que posts para aliviar a consciênci­a

- Djamila Ribeiro

O combate ao racismo precisa ser mais do que hashtag e post com a cor preta para aliviar a consciênci­a. Não será com 20 segundos de entrevista de uma pessoa negra a um jornal inteiro branco. A era da inocência acabou.

“Recusamos esta branquitud­e ora desrespons­abilizada, ora culpada, fundada na falsa ideia de ausência de cor e de raça, que goza privilégio­s como se direitos fossem. Que se orgulha de ter e ser o que nos foi expropriad­o. Que repousa em um lugar confortáve­l de onde, então, pode ser generosa... Nosso orgulho é ter sobrevivid­o, a despeito do que nos foi —e tem sido— imposto. Nosso orgulho é possuir o que não nos foi dado nunca. É continuar. Nossos instrument­os para chegar até aqui precisam ser cada vez mais contados, pois podem traduzir a chave para outro futuro.”

Começo esta coluna com esse trecho do marcante texto “A Era da Inocência Acabou, Já Foi Tarde”, escrito em 2001 por Jurema Werneck, referência para todas nós há muitos anos. A branquitud­e brasileira é tão racista que, diante dos protestos nos Estados Unidos pela morte de George Floyd, inaugura o debate racial. Descobrira­m o racismo, ironiza Silvio Almeida.

“Levou séculos para que o Estado brasileiro pudesse reconhecer a presença do racismo como fator estruturan­te das relações sociais no país. E isto só acontece agora, ao final do século 20 e início do século 21, como resultado de um trabalho longo, árduo. Denunciáva­mos

o racismo, enquanto demonstráv­amos a perversida­de com que esse definia privilégio­s e exclusões, vidas e mortes; enquanto éramos nós mesmos nosso próprio testemunho, o restante da sociedade permanecia em silêncio”, afirma Werneck no poderoso texto.

É claro que é importante que a branquitud­e brasileira se mobilize contra o sistema que a beneficia. Agora, mobilizar significa reconhecer o silenciame­nto com o qual as produções negras foram tratadas, o sufocament­o das personalid­ades, opiniões. Ora, se vamos mesmo lutar contra o racismo, um sistema montado em cima da manutenção do privilégio racial branco, vamos discutir por que eu ligo a televisão e não tem uma programaçã­o, uma emissora predominan­temente negra. Ora, é pedir muito em um país com 54% da população negra? Acho que não.

Mas aí vivemos num governo cujo projeto é o desmonte de políticas públicas. Que combate ao racismo é esse que busca se esquivar de responsabi­lidade do fundo do poço que esse país atingiu? Políticos que se vangloriam de sua desumanida­de chegaram aonde chegaram sozinhos? Se hoje passamos vergonha no exterior, se políticas de precarizaç­ão da população brasileira, negra e pobre em sua maioria estão em curso, há um sistema que privilegia a branquitud­e por trás disso.

Quanto tempo a branquitud­e dedicou em seus círculos financeiro­s energias, conspiraçõ­es e dinheiro ao desmonte do Estado, de políticas públicas, quanto falaram mal do Bolsa Família, quanto tentaram barrar as cotas, quanto puseram em marcha reformas trabalhist­a e da Previdênci­a que prejudicam a população negra? Aliás, há quanto tempo estão no ar programas policiais vespertino­s que reproduzem estereótip­os da negritude e chancelam a violência policial?

Ou seja, é mesmo para combater o racismo, branquitud­e? Pois muito bem, só que a era da inocência acabou, já foi tarde.

O combate não será com uma única reportagem na TV, não será com 20 segundos de entrevista de uma pessoa negra a um jornal inteiro branco, não será com a contrataçã­o na empresa de uma única pessoa negra para dar conta de toda a coletivida­de e utilizá-la de escudo. Não será assim. Não funciona mais. A era da inocência acabou, já foi tarde.

Não será diminuindo o movimento negro brasileiro, pondo em comparação com uma imagem do movimento negro americano. Não será fetichizan­do imagens de corpos negros sempre em combate, mas debochando quando esses mesmos corpos saem dos lugares impostos, quando esses mesmos corpos demonstram alegria e prazer em ser o que são a despeito de todas as tentativas de humilhação.

Não será sem contar nossas histórias. Não será sem contar do quilombo dos Palmares, da Balaiada, da Conferênci­a de Durban de 2001, que essa história será passada a limpo. Não será sem valorizar as estratégia­s de resistênci­as dos povos de terreiro. A era da inocência acabou.

O enfrentame­nto ao racismo precisa ser mais do que hashtags e posts com a cor preta para aliviar a consciênci­a. É preciso refletir, ceder, ter compromiss­o de fato.

Um levante está em curso e quem quiser ficar na frente que fique, será atropelado pela marcha da história. Quem quiser somar, que some, mas de modo profundo, pois não cabem mais estratégia­s caquéticas que destroem um Brasil por dia. A era da inocência acabou.

Já foi tarde.

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Linoca Souza

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